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Armas de empresas de segurança vêm abastecendo o crime no Estado do Rio. Segundo um relatório da Polícia Federal, pelo menos 17.662 foram desviadas ou roubadas de firmas de vigilância e acabaram nas mãos de bandidos nos últimos dez anos. O material levado pelas quadrilhas inclui ainda 9.663 projéteis e 417 coletes à prova de bala. Preparado pelo delegado Leandro Daiello Coimbra, diretor-geral da PF no país, o levantamento foi enviado à CPI das Armas instalada na Alerj.

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O armamento desviado não é pequeno: representa cerca de 30% do volume disponível (58.476) em todas as empresas do setor no Rio (são 222). Mas o que mais chama a atenção no documento assinado por Daiello é a informação de que cerca de 4.500 armas simplesmente desapareceram de dentro das firmas, sem deixar vestígios. Ou pelo menos foi o que elas alegaram oficialmente à PF – responsável pela fiscalização da atividade: que o material fora perdido quando não estava sendo usado em serviço.

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Mas, de acordo com as justificativas apresentadas pelas firmas de vigilância, a maioria das 17.662 armas foi parar nas mãos de criminosos quando estava sendo usadas pelos seguranças. Ou seja, ou foram extraviadas em serviço ou roubadas durante assaltos contra transportadoras de cargas (cujas escoltas costumam também ser atacadas pelos ladrões).

Por lei, toda empresa de segurança precisa comunicar qualquer roubo, furto ou extravio de armamento à PF, que faz a contabilidade. Da extensa relação de material que trocou de mãos nos últimos dez anos, constam escopetas calibre 12, carabinas 38, espingardas 22, pistolas 380 e revólveres 38.

O relatório revela ainda que, em cinco anos, só na cidade do Rio, mais de 900 armas saíram das firmas para o arsenal dos criminosos. Em 2011, foram 128; em 2015, 255, o que significa um acréscimo de 75%.

Para piorar a situação, não há investigações criminais exclusivas sobre o problema. A PF acabou com sua delegacia de combate ao tráfico e contrabando de armas. Na Polícia Civil, foi extinta a Delegacia de Repressão a Armas e Explosivos (Drae). Segundo a Polícia Federal, das 222 empresas de segurança do estado, 95% são controladas por militares da ativa, policiais e ex-integrantes das Forças Armadas e da PM.

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“É uma informação extremamente grave, em todos os aspectos. Os números revelam que empresas de segurança estão armando os criminosos, aquele bandido que utiliza arma curta para assaltar e matar nas ruas da cidade. Também revelam que não há controle desse arsenal pelas autoridades de segurança.”

Carlos Minc (sem partido) Deputado presidente da CPI das Armas na Alerj

Em junho de 2015, o grande número de armas desviadas das empresas de segurança do Rio chamou a atenção da PF. Dois delegados federais, Alcyr dos Santos Vidal e Marcelo de Souza Daemon Guimarães, enviaram ofícios de alerta ao secretário de Segurança, José Mariano Beltrame; a Fernando da Silva Veloso, chefe de Polícia Civil; e ao então comandante-geral da PM, coronel Alberto Pinheiro Neto. Nada foi feito, e os desvios não diminuíram.

Nos documentos, aos quais a reportagem teve acesso, os policiais federais expressaram preocupação com a grande quantidade de ocorrências e levantaram suspeitas. “Pode haver a presença de grupos ou grupo organizado que estejam concorrendo para o extravio, furto e roubo de armas e munições das empresas especializadas em segurança privada”, diz o texto. Os delegados terminam pedindo providências às autoridades de segurança do estado.

Marcelo Daemon confirmou o envio dos ofícios.

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“A Polícia Federal fiscaliza as empresas no âmbito administrativo. Não instauramos inquérito para apurar supostos crimes, que é uma atribuição da Polícia Civil. Detectamos um aumento no número de armas roubadas, furtadas e extraviadas das empresas de segurança e comunicamos o caso ao estado”, afirmou Daemon, lembrando que, em cinco anos, 36 firmas foram punidas administrativamente pela PF, com o cancelamento definitivo do registro no Rio, depois de identificadas irregularidades.

A Secretaria de Segurança confirmou, em nota, que “foi oficiada pela Polícia Federal e remeteu o documento à Polícia Civil (...) para as devidas providências”. Procurada, a Polícia Civil não informou que providências tomou.

Carlos Minc criticou o jogo de empurra: “O que nós estamos vendo na CPI é que arma não é prioridade dos governos federal e estadual. O próprio secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, revelou à CPI que não tem acesso ao banco de dados da Polícia Federal. E ele é delegado da PF. Estamos considerando a hipótese de que circunstâncias criminosas estão por trás do grande volume de desvio de armamento no estado”.

Não é a primeira vez que empresas de segurança aparecem entre fornecedoras de armas e munição para o crime organizado do Rio. Há dez anos, um relatório de uma CPI instalada no Congresso Nacional concluiu que 86% do armamento apreendido com criminosos no estado tinha origem legal. Ou seja: fora vendido pelas fábricas diretamente a firmas de vigilância, além de lojas e forças públicas de segurança, como polícias estaduais e Forças Armadas.

O presidente do Sindicato dos Seguranças do Rio, Antônio Carlos de Oliveira, atribuiu a grande quantidade de armas desviadas aos muitos roubos de cargas que acontecem no estado: “Quando os assaltantes atacam uma transportadora para levar a carga, acabam rendendo a escolta e levando também as armas dos seguranças. Normalmente, escopetas, revólveres e pistolas”.

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“Trata-se de um volume elevadíssimo de armas, muitas das quais acabam sendo desviadas para atividades criminais. Isso equivale à falência da capacidade de fiscalização do Estado em relação às empresas privadas de segurança, que de fato sempre foi muito limitada. Quando eu trabalhava nesse tema, encontrei empresas que, sozinhas, eram responsáveis pela perda (roubo, furto ou extravio) de centenas de armas. As empresas deveriam sofrer uma fiscalização muito mais estrita e ser punidas por essas perdas.”

Ignácio Cano Sociólogo do Laboratório de Análise da Violência da Uerj.

O roubo de cargas no estado de fato tem aumentado. Segundo estatísticas oficiais, o número de registros desse crime subiu 50,9% em abril, em comparação com o mesmo período de 2015.

O presidente do sindicato também chama a atenção para as condições de trabalho dos seguranças. Segundo Antônio Carlos, as empresas que prestam esse serviço utilizam carros 1.0, sem blindagem – uma desvantagem no enfrentamento com os criminosos. Lembra ainda que os vigilantes usam, em geral, um revólver calibre 38 (de seis tiros) e uma escopeta 12. “Eles viram presas fáceis de criminosos armados com fuzis”, frisa.

A procuradora Cynthia Simões Lopes, da Procuradoria Regional do Trabalho, informou que uma reivindicação do sindicato por melhores condições de trabalho já está sendo analisada: “Analisamos todos os aspectos para adoção de providências. Há realmente uma grande exposição do trabalhador das empresas de segurança a risco”.

Procurado, o Sindicato das Empresas de Segurança Privada do Rio não retornou as ligações.

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As preferidas dos traficantes

Não são apenas as empresas de vigilância que estão armando as mãos do crime no Rio. Depois de cinco meses de trabalho, a CPI instalada na Alerj para investigar o problema constatou que o mesmo acontece nas forças de segurança. Nos últimos dez anos, pelo menos 1.661 armas de guerra e de uso restrito, como fuzis, submetralhadoras e pistolas 9mm – preferidas dos traficantes –, foram desviadas das polícias estaduais.

A Polícia Civil informou aos deputados que de seu depósito sumiram 1.016 armas; já dos quartéis da PM, desapareceram 645. Além disso, das duas corporações, extraviaram-se ou foram roubados, no mesmo período, nove mil projéteis. A PM tem em seus estoques 61.152 armas; já a Civil conta com 22.980.

 

Em depoimento à CPI, o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, admitiu que existe um “total descontrole” na fiscalização das armas que circulam no estado. Segundo afirmou, o problema acontece devido à falta de acesso, da Secretaria de Segurança, aos dados do Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), do Exército, e do Sistema Nacional de Armas (Sinarm), da Polícia Federal.

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De acordo com a secretaria, a falta de números de registro das armas (que são raspados quando vão parar nas mãos dos criminosos) é outro problema. Beltrame contou, por exemplo, que, das 8.956 apreendidas com bandidos em 2015, cerca de 50% não puderam ter sua origem rastreada, por falta do número.

O secretário disse aos deputados que, desde que assumiu a pasta, se empenha para melhorar o controle do armamento utilizado pela polícia, mas que, tendo que priorizar outras iniciativas, sempre esbarrou na falta de recursos. Ele, por exemplo, gostaria que cada PM, no ato de formatura, recebesse uma arma de pequeno porte, que ficaria acautelada com ele, assim como acontece em São Paulo. Mas não há recursos para fazer isso (o estado tem cerca de 55 mil policiais militares).

Beltrame concordou com a necessidade de mudar o sistema de controle das armas acauteladas nos batalhões da PM, atualmente feito manualmente, em livros de registro. Mas a modernização do sistema (são 41 batalhões, sem contar as unidades especiais) também esbarra na escassez de verbas.

Os integrantes da CPI, que incluem, além do seu presidente, deputado Carlos Minc (sem partido), dois ex-chefes de Polícia Civil - Martha Rocha (PDT) e Zaqueu Teixeira (PDT) -, querem agora aprovar uma lei obrigando o estado a criar um sistema de rastreamento de armas. Querem pedir ainda a aprovação de uma lei, desta vez federal, dando ao estado direito de acesso aos bancos de dados do Sigma e do Sinarm.

“O Rio está muito atrasado”, disse Minc. “A CPI das Armas proporá uma série de leis e medidas para aprimorar os sistemas de controle, como o uso de chip de identificação nas armas das polícias.”

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