"Meninas, atenção", grita a dentista Nereida Hessel Dias em meio ao encontro anual das ex-formandas do ginásio do Colégio Nossa Senhora de Lourdes, o "Colégio do Cajuru", como ficou conhecido. É hora de ler o discurso feito pelo professor Eloyr Blanck paraninfo da turma. O silêncio de catedral impera, prova de que elas continuam gurias do internato de freiras, 52 anos depois de terem tomado seu rumo. Uma parte do texto chama a atenção: "... e mesmo quando sobrarem apenas duas de vocês, continuem se reunindo", escreve o mestre, repetindo o pedido que faz a cada reunião, desde que essa história começou.
Confraternizações de ex-alunos deixaram há muito de ser uma novidade. Acontecem a todo tempo e em cada canto, graças às redes sociais. Mas esse caso é diferente. A formatura ocorreu em 1962. Eram 60 alunas, turmas A e B. Vinte anos depois, em 1982, Nereida promoveu o primeiro reencontro. Foi um acontecimento a organizadora, afinal, contou unicamente com a coragem e os préstimos de uma lista telefônica. "Liguei para 300 Baggios, atrás de Alba. Não sabia o nome dela de casada", conta a respeito de Alba Demeterco, que viria a se tornar sua parceira na empreitada.
Deu certo. Há 32 anos, é sagrado fim de ano, elas se põem arrumadas e se reúnem. Trocam presentes. Riem de si mesmas ("Meu Deus, é você mesma?"). Reviram as memórias. Fazem o balanço das perdas em meio século algumas perderam casamentos, fortunas, maridos e a beleza. Só não perderam o professor de Português, Eloyr Blanck. Esse é o ponto. Grupos de "ex" são muitos. Com professor a tiracolo, raros. Diante do mestre, as participantes (hoje entre 66 e 70 anos) ainda se sentem aos 15, trajando o pesado uniforme azul marinho do "Cajuru". Para coroar o revival, Blanck as trata por "meninas". Aviso: não as chamem de senhoras ou donas. Não nesse dia.
Três "cês"
O vínculo de Eloyr com suas alunas de ginásio merece figurar nas mais belas páginas da educação. "Elas têm a mim como o pai que a maioria já perdeu. E são as filhas que não tive", interpreta. Faz sentido. Curitiba tinha 360 mil habitantes quando essa turma concluiu o ginásio. Eram adolescentes numa cidade acanhada. "Tudo se resumia a três cês o Cajuru, o Curitibano e Caiobá", brinca a veterana Vera Maria Schettini. Graças. À época, algumas convidaram Blanck para dançar na festa de debutantes, para o casamento, para o batizado dos filhos. Pediram conselhos. Em 1982, quando os encontros anuais começaram, muitas tinham o telefone do educador na agenda ele era da família.
O intrigante é que essa rede poderia ter se formado com qualquer outro. Por que ele? Tudo começou em 1960. Ao chegar em casa, do trabalho, a mãe de Eloyr avisou que havia duas freiras a sua espera na sala. Eram irmãs de São José de Chamberry. Solenes, usavam longo hábito preto de lã, sem um fio de cabelo à mostra. Não raro, mesmo se nascidas no Abranches, ganhavam nomes franceses depois de fazerem os votos. Naquele dia, estavam ali Marie Andree e Marie Felicité. Queriam convidá-lo para lecionar no Nossa Senhora de Lourdes, colégio que desde os anos 1910 educava a nata paranaense.
Estranhou a proposta homem, jovem e ainda por cima solteiro, tinha tudo para "não" ser contratado. Em francês lustroso, perguntou às religiosas se não haveria impedimento. Riram. O Concílio Vaticano II começaria somente dali um ano, mas as duas não se acanharam em dizer que "aquilo era passado". Em pouco tempo, o alto, educado e eloquente Eloyr Blanck atravessou a Avenida Capanema e estacionou seu Delphini azul na porta do liceu paranaense que rivalizava com o Sion em importância.
"Cheguei lá com um propósito. Seria ali o que eu era em qualquer lugar. E queria ser amigo das alunas", conta. As gurias viram logo que o novato trazia oxigênio. No início da década de 1960, o Colégio do Cajuru resistia, em vão, às mudanças que varriam o planeta. Mère Julia a madre francesa que conduzira a instituição desde o início estava idosa. De dama de ferro, reduzira-se a uma idosa sentada no pátio, com um "radinho" de pilha grudado às orelhas.
O Cajuru de mère Julia permanecia sinônimo de educação rigorosa, mas nada que impedisse as alunas de ouvir Elvis Presley e de esconder livros proibidos na parte debaixo da carteira, para lê-los durante as aulas chatas. Não deixa de ser simbólico a superiora morreu em 1962, o ano em que o primeiro solteiro a lecionar ali se tornou paraninfo de uma turma recheada de sobrenomes graúdos. Ele atendia o que as gurias esperavam de um professor da era Kennedy, dos direitos civis dos negros, da corrida espacial. Como não fugiu à luta, ganhou lugar cativo no álbum de retratos e na caderneta de endereços de todas elas.
"Eu tinha a fama de que as defendia. Na verdade, ouvia os dois lados", conta. A empresária e artista plástica Diana Zippin diz que é lorota. "Ele peitava mesmo". É lendário o exercício de literatura brasileira pedido por Eloyr. A escolha do título era livre. Ela escolheu Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado, autor que pontificava o índex do Cajuru. Para piorar, a aluna desenhou na capa do trabalho a generosa heroína baiana, com os seios de fora.
"Decidiram me mandar embora. O professor disse que iria junto comigo se isso acontecesse". Final feliz ficaram os dois: Diana para invadir a clausura das freiras, descobrir o que havia nas celas e contar para todo mundo, tentar fugas espetaculares e entrar para a galeria das mais-mais rebeldes do Cajuru. Eloyr para ocupar um cargo raro o de paraninfo vitalício. Ao todo, escreveu mais de 30 discursos para suas afilhadas. Elas dizem que dariam um livro, um livro que estão lendo ano a ano, sem precisar escondê-lo de ninguém.