Contar a saga da ocupação é um dos esportes preferidos entre muitas das 693 famílias do Vila 23 de Agosto, no Ganchinho. Foi uma experiência tão marcante que, não por menos, a comunidade se chama... 23 de agosto, dia de seu início, em 1991. Alguns políticos bem tentaram mudar o nome – para Madre Teresa de Calcutá, por exemplo. Receberam figas como resposta.
Ao ouvir os moradores, dá para entender. A “23” nasceu de um movimento de 14 grupos organizados em paróquias da Zona Sul de Curitiba. Formaram-se no Xaxim e Fanny, entre outros, somando 750 famílias, algo como 4 mil pessoas. Durante meses, líderes reuniam interessados para lhes explicar a natureza do movimento. Tão importante quanto era organizar o “dia D”, cercado de mistérios, para evitar margens de erro. Numa dessas reuniões estava a hoje líder comunitária Vera Lúcia Soares Peres, 61 anos. Confessa que não sabia o que estava fazendo ali.
“Eu não tinha consciência política”, conta, sobre a época em que ouviu pela primeira vez o grito de guerra “direito à habitação”. Era uma moradora típica da Vila São Pedro – área do bairro Xaxim que inchou com a Geada Negra de 1975. Trabalhava como diarista, tinha seis filhos e lembra bem de que para pagar o aluguel, castigava a despensa. Mas nenhum sacrifício parecia convencê-la daquela história de “levantar acampamento” – “algo fora dos meus princípios”. “Tive de superar meus preconceitos. Eu era uma pessoa que não entendia o movimento da moradia. Só sabia repetir que não queria tomar o que era dos outros, que não queria nada de ninguém”.
Até que foi fisgada. A relação explícita entre o Êxodo e o movimento dos sem-teto passou a fazer sentido. Tornou-se frequente nos encontros, até lhe sentir gelar do cocuruto ao dedão dos pés. Numa ocasião, 3 mil pessoas se reuniram em torno da Igreja da Vila São Pedro. “Disseram que a ocupação seria naquela noite”, lembra. O marido disse que não ia. Vera não teve tempo de conversar. Precisava arrumar um frete para levar os pertences da família. Na madrugada, todos embarcaram na Kombi.
Antes e depois
Mais de duas décadas depois, não esconde a emoção ao lembrar aquele 23 de agosto. Dividiu sua vida em dois. “Ao contrário da que publicou a crônica policial – ‘naquela noite chuvosa do mês de agosto’, não caiu uma gota de água no mês que chegamos lá”, diverte-se. E emenda: depois da ocupação, aprendeu a pensar junto, a negociar, a bater na porta da Cohab, a falar com advogados, a ir em audiência pública. E também a se virar sem tanque de roupa, a tomar banho de canequinha e a se proteger das cobras, comuns feito pernilongos no escampado que abrigou a ocupação.
“Meu barraco ficava do lado do dela”, recorda a amiga Arlete do Rocio Paixão, 51, então com 27 anos, um filho pequeno e moradora de uma garagem do Xaxim. “Me filiei num grupo de sem-teto chamado Santo Antônio. Dei sorte. Consegui até marido”, brinca. Por uns bons meses, Vera e Arlete buscaram água na bica juntas. Sentiam medo de ganhar corridão dos proprietários da área. Chateavam-se quando os moradores do Umbará, bairro vizinho, as chamavam de “bandidas”. “A gente erguia a cabeça”, contam. Tinham mais o que fazer – como abrir valetas e colocar manilhas. No braço. “Até rabicho de luz a gente fazia de forma organizada”, conta outra líder, a cabeleireira Joelma Palmeira, 49 anos.
Até que veio a bonança. Aos poucos, a “23” começou a ganhar cara de vila. Os terrenos 8 X 20 metros garantiam certa ordem, ainda que lhe faltasse asfalto, benefício vindo há dois anos.
Vera mandou ampliar as poucas fotos tiradas naqueles inícios – guarda-as como se fossem um oratório de Nossa Senhora Aparecida. Mostra-a à neta, a quem quer que julgue. Volta e meia, conta como tudo se deu aos alunos das escolas da região – a Iara Bergmann e a Carlos Drummond de Andrade. “Não dá para esquecer”, assim como de todo o resto.
Em 1998 foi o caso. O “23” ganhou novos moradores, que desmataram o bosque que protegia o Ribeirão dos Padilhas. Os alagamentos se tornaram comuns, assim como a violência, fazendo do “23” um cliente das páginas policiais. “Era injusto”, repetem, sobre o local que atingiu um alto grau de organização comunitária.
Pense num programa social e saiba que foi pelo menos discutido na vila, debaixo de um assembleísmo típico dos espaços nascido debaixo dos esforços das Comunidades Eclesiais de Base e partidos de esquerda. Outra marca do “23” é ser um lugar de “mulherio”, como se diz no movimento social. Com desculpas a “eles”, “elas” dominam as decisões. “Já escreveram até livro sobre isso”, conta Vera, sobre uma monografia recém-defendida.
Um dedo de prosa com outra das muitas mulheres que atuam no “23”, Joelma Palmeira, confirma a dita. Natural de Toledo, no Oeste do Paraná, chegou a Curitiba na década de 1980, esperando o céu. Encontrou becos, ruas sem asfalto. “Eu morava nos fundos”, resume. “Um dia alguém me mandou ir para a invasão. Na Igreja entendi a diferença e fui para a ocupação”. Descobriu o tal do mundo novo – “embora eu fosse muito verdinha, mesmo depois de brigas pelas Diretas Já”. Pegou gosto pela militância – que só lhe trouxe benefícios. A mulher que dormiu debaixo da lona preta e que provou das incertezas tem filhos formados na faculdade, um salão de beleza e uma causa que lhe enche a vida. “O movimento tinha sabor de aventura. Exigir coragem. Apendi ali tudo o que sei.”
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