1968 não terminou para o padre Gustavo Henrique Pereira Filho, 95 anos recém-completados. Ele lembra de episódios que o vento não levou, como uma tentativa de invasão policial à Casa do Estudante Universitário (CEU), em Curitiba. A moçada que morava na instituição se defendeu como podia com pedras. Era a "Idade da Pedrada". "O salão social ficou cheio de tijolos. Foi uma disputa de forças", ilustra o nonagenário que não assistiu a essa guerra do outro lado da rua nem soube do acontecido pelos jornais. Ele estava dentro da CEU da qual foi capelão por duas décadas, tempo em que dividiu o teto e as pedras com os hóspedes do barulho.
A ligação do padre Gustavo com os estudantes marcou os anos 60 e 70. "Ele era uma instituição na cidade", resume o jornalista Carlos Jung que, naquele tempo, cumpriu o destino das pessoas de sua idade. Não só se tornou amigo do sacerdote como o convidou para celebrar seu casamento, o que, aliás, parecia uma mania tão comum quanto mascar chicletes. Num desses muitos enlaces, recorda Gustavo, a noiva subiu o altar sem sapatos, vestindo meias brancas, fazendo justiça ao estilão psicodélico da geração paz e amor. "Estranhei as meias, mas não falei nada", relata, feito um garoto de colégio.
O sacerdote gaúcho deu a bênção nupcial a gente que faria fama na política, como José Richa, que se tornou governador do estado, e a Orlando Pessuti, atual vice-governador. Arlete Richa, 65 anos, viúva de José Richa e mãe de Beto, atual prefeito de Curitiba, lembra com detalhes do dia do matrimônio, em 1963, quando padre Gustavo profetizou, no sermão, o futuro do noivo. "Ele disse que o Richa seria governador e eu a primeira-dama. Achei meio pretensioso. A gente nem pensava nisso naquela época. Mas acabou se realizando."
Apesar das ligações perigosas com a turma mais à esquerda, da pecha de pró-comunistas e de ter batido ponto até em Congresso da UNE (onde conheceu José Serra), Gustavo não se encaixava na categoria "padre de passeata", expressão cunhada pelo implacável Nelson Rodrigues para definir o clero progressista. Teve sim lá os seus problemas de meter medo com o AI-5, chegando a ser enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Mas nunca precisou passar pelo constrangimento de depor. Seu anjo da guarda era ninguém menos do que o arcebispo dom Manuel da Silveira DElboux, incentivador para que se mantivesse à frente de uma ação pastoral ainda um bocado avançada para a época. Afinal, ainda hoje, quem imaginaria um padre ou um pastor morando na CEU?
É aos seus anos dourados que o padre recorre para encontrar a expressão um dia usada para defini-lo, tamanha curiosidade sua figura provocava na cidade: "prafrentex", palavra hoje tão estranha quanto "patota", "jóia" ou "supimpa". "Eu tinha pouco mais de 40 anos e acabara de encontrar um mundo diferente. Meu lema era: para frente e para o alto", repete pelo menos três vezes durante a entrevista, feita no apartamento em que mora, perto do Passeio Público e, como era de se imaginar, da Casa do Estudante. O chavão serve como resumo da ópera, afinal é assim que Gustavo se vê, um cara moderno mas nem de esquerda, nem de direita. Pelo que tudo indica, os outros também.
"Era considerado de esquerda", afirma o jornalista João Féder, que várias vezes entrevistou padre Gustavo no tempo em que ele era assunto do dia. Segundo o próprio padre, Féder teria certa vez lhe perguntando de que lado estava. "Mas isso foi há 40 anos. Muito tempo. Lembro de pouca coisa", diz o jornalista. Já Carlos Jung não concorda. "Quem disse que ele era de esquerda?", pergunta o profissional da imprensa para quem, por conta das relações com políticos e com a nata da sociedade paranaense, o cura da CEU pertencia à ala conservadora. "Como todo mundo, eu queria reformas. E esperava qualquer coisa do governo militar. Preguei a Doutrina Social da Igreja, só isso", avisa o religioso.
Pereira realmente conhecia as socialites dos 60, ou as "locomotivas", como diz, das quais se aproximou para que se tornassem madrinhas dos moradores pobres da Casa do Estudante. Ele cita com estima dona Hermínia Lupion, histórica incentivadora da CEU, desde sua criação, em 1956. A palavra de ordem, então, era dialogar com o mundo uma espécie de iê-iê-iê eclesiástico que incluía as tais "locomotivas" e tudo mais. O padre lembra, por exemplo, de ter aberto a Casa para visitas das misses Brasil de 1966, Ana Cristina Ridzi, e 1967, Carmem Sílvia Ramasco. Os moradores, evidentemente, fizeram panelaço, apitaço e barricada, mas não para derrubar poder. A CEU de Gustavo não era só pedrada.
Manchete
Do alto dos 95 anos, um lúcido padre Gustavo confessa que viveu. Viveu muitas vidas. A primeira como único filho homem de um ferroviário açoriano que queria porque queria ter um filho médico. Mesmo o garoto tendo avisado, aos 12 anos, que desejava ser padre. Em 1935, formou-se em Medicina, atuando como pediatra. Foram 12 anos de consultório, período em que viu morrer o pai e teve de assumir a educação de uma irmã temporã tarefa que abraçou antes de ingressar no claustro. Em 1947, começou a segunda jornada desse poema. Tornou-se jesuíta. "Não faltou quem me dissesse: Não faça isso!". Não deu ouvidos.
Arrisca a ordenação ter sido mais noticiada na Porto Alegre de 1953 do que a indicação de João Goulart para o Ministério do Trabalho, a eleição de Jânio Quadros em São Paulo ou, um ano depois, o quebra-quebra da diva Ava Gardner no Copacabana Palace. Os jornais da capital gaúcha adoraram a história curiosa do médico que virou padre. Mereceu manchete. Nascia o mito.
Teilhard de Chardin
Na conversa com a reportagem, padre Gustavo deu pistas em prestações sobre as 101 referências que fizeram dele um homem de seu tempo. Quando decidiu abandonar a Medicina para ser jesuíta sentia fascínio pelas idéias de Teilhard de Chardin, teólogo e cientista visionário que deixou aos pulos o coração a geração 50 ao falar do Cristo Cósmico e da cristificação do universo. Isso, bem no momento em que começava a se falar em corrida espacial e Darwin ainda não era bem recebido na sala de visitas.
Mas Teilhard não foi o único inspirador do "prafrentex" Gustavo. Houve também os padres operários franceses, liderados por Jacques Loew a partir dos anos 40, encantando milhares de jovens ao trocarem batina por macacão sujo de graxa, infiltrando-se secretamente nas fábricas. Qualquer semelhança com o padre que foi viver no meio dos estudantes não é mera coincidência.
Se Teilhard e Loew deram uma forcinha, a descoberta do método Ver-Julgar-Agir foi o empurrão que faltava para abandonar de vez o estetoscópio. O método era utilizado nas comunidades eclesiais, feito a Juventude Operária Católica (JOC), Juventude Estudantil Católica (JEC) e em especial pela Juventude Universitária Católica, a JUC, que viria a se tornar o segundo endereço de padre Gustavo Pereira. "O Ver-Julgar-Agir me abriu os olhos", elogia, sobre aqueles anos incríveis que levaram ao Concílio Vaticano II, a um vento fresco nas catedrais e à política. Nos saraus com os moradores da CEU, já padre, Gustavo ouvia falar mais de Marx do que dos ídolos da Jovem Guarda.
Esse roteiro só foi abalado quando a disposição do sacerdote em discutir luta de classes, propriedade privada e mais-valia esbarrou na moral católica. "Deram licença para mulheres dormirem na Casa do Estudante. Não aceitei e me retirei", lembra o religioso, que iniciou um novo capítulo, o de capelão do Palácio Iguaçu e do Tribunal de Justiça, entre outros trabalhos que lhe garantiram a alcunha de "padre dos três poderes". Os ex-inquilinos da CEU que aos poucos tinham atravessado a rua e se instalado no Palácio Iguaçu e na Câmara carregaram consigo o sujeito que era médico, padre e gostava de política. Não tem como esquecer um cara "prafrentex".
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