A primeira impressão é de escombros de fim de guerra. O barracão em ruínas avança 50 metros para os fundos e 50 para os lados, entremeado por três grandes vãos longitudinais separados por paredes internas. Telhado quase não há, e o sol se debruça sobre as crianças que jogam bets, pés metidos na poça dágua pútrida onde boia uma ratazana morta. Uma quase matilha de cães vulgares, fustigada pela fome, vaga alheia ao vaivém da bolinha rebatida em voleio pela menina que oscila com a ripa numa mão e um bebê na outra. Ao fundo, para onde se olha há lixo. Sobre as pilhas de entulhos, homens, mulheres e crianças tiram dali o que comer.
Há muito o que perguntar, mas o cenário dá as respostas. A luz elétrica desce da ligação clandestina, a água de beber vem de um vizinho solidário. Estamos na Avenida Dario Lopes dos Santos, a meio caminho entre a Rodoferroviária e o Jardim Botânico, e apegados à imundície, entre os paredões em ruínas, despontam alguns arrazoados habitacionais. Espólio de uma indústria de vidros falida em 1995, o lugar foi saqueado há oito anos por vândalos que levaram teto, portas, janelas, qualquer coisa de valor. A depredação acabou unificando quatro barracões num só, logo ocupado por famílias de sem-teto, dando início a uma cadeia de exploração de miseráveis.
Há cinco meses o síndico da massa falida, o advogado Brasílio Bacellar, pediu à Justiça a retirada dos invasores. Ainda sem resposta, o espaço virou uma senzala moderna, onde catadores de papel tomam a vez de escravos contemporâneos. Estando a maioria dos depósitos do gênero em favelas, esse foge à regra. Atento às boas oportunidades, há sete anos Rubens Mendes Ferreira "comprou os direitos" do lugar de um tal Josiel, escolheu o melhor pedaço para si e alugou antigas salas de escritório para carrinheiros. Cobra até R$ 50 por semana de cada uma das seis famílias por um espaço de não mais que oito metros quadrados, onde até nove pessoas vivem confinadas.
O sétimo inquilino, Joaquim Sílvio Damasceno, alugou uma área maior do barracão a R$ 700 por mês, aproveitou a parede interna, ergueu seis barracos com madeira tirada do lixo e sublocou para catadores a R$ 20 por semana. A menos de mil metros do barracão, numa das duas favelas do anel central de Curitiba, novas histórias de servidão dos garimpeiros do lixo.
O número 302 da Rua Manoel Martins de Abreu traz na fachada a insuspeita aparência de uma casa normal para os padrões de uma favela, com a estrutura de madeira sob pilares de concreto para aproveitar o desnível do terreno e ampliar o porão. Mas as impressões logo mudam diante da incomum movimentação nos fundos da residência. O rés-do-chão é na verdade um depósito de lixo reciclável e no centro desse lugar úmido e lúgubre, uma escada de madeira é o único acesso ao piso superior, onde dez famílias vivem sobre toneladas de entulhos, sujeitas aos nocivos eflúvios da decomposição de sujeira orgânica impregnada nos materiais recicláveis.
A escada conduz a um buraco por onde se acessa o pequeno cortiço, dividido em duas alas por um estreito e sombrio corredor. Sem ventilação nem entrada de luz natural, o cenário é desolador e o choque, inevitável. Nessa atmosfera pestilenta, estômagos frágeis não suportam mais do que alguns poucos segundos. Confinados, os inquilinos ainda precisam pagar R$ 25 por semana por um cubículo de 2,5 metros por 3,5 metros; o "apartamento" de dois quartos custa o dobro. A cobrança é semanal, para evitar prejuízos com a inadimplência, diante do contínuo entra-e-sai. Há só dois banheiros, e são coletivos.
Nesse lugar de pouca privacidade, rara liberdade e nenhuma segurança, a mobília é reduzida e os inquilinos não podem ter em casa objetos pesados. Embora esdrúxula, a explicação vem do próprio dono do cortiço, José Roberto Pereira Júnior, o Polaco. Sem sapatas nas bases, os pilares de concreto estão sob constante risco de afundar. Mas esse é só um dos perigos. O patamar superior foi erguido há 17 anos com pínus, madeira inapropriada para esse fim, e o que ainda não apodreceu está sendo consumido pelos cupins. "Em mais dois anos isso aqui tá tudo podre", admite Polaco. Ele tem mais dois barracões idênticos na mesma favela, a Vila das Torres.
Polaco isentou do aluguel, da água e da luz elétrica os sete coletores que recolhem lixo para ele, mas cobra todas as despesas dos 11 inquilinos que vendem suas coletas para outros atravessadores. E são justamente esses os de melhor desempenho na coleta. Polaco se faz de desentendido, mas bem sabe que os carrinheiros fizeram as contas e perceberam que os concorrentes dele pagam mais, a ponto de cobrir o valor do aluguel e ainda sobrar alguns trocados. (MK)