Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) estão se tornando “arroz de festa” em eventos políticos, programas televisivos, reuniões de celebridades e até shows de artistas famosos. A falta de pudor dos togados suscita preocupação em juristas sobre a ruptura de princípios vitais para a Justiça e a democracia, como os de imparcialidade, impessoalidade e independência dos juízes.
A tendência ao pavoneamento dos magistrados não é nova no Brasil, mas certamente se intensificou nos últimos quatro anos. São frequentes as participações em reuniões de grupos ativistas – como o Lide ou o MST –, os palpites sobre os mais diversos assuntos do debate público, as indiretas a políticos via redes sociais ou pelo microfone de jornalistas, e o relacionamento deslumbrado com figuras do mundo das celebridades com viés de esquerda como Daniela Mercury, Caetano Veloso, Felipe Neto ou Djamila Ribeiro.
A fama atrai a atenção da mídia: programas de TV têm recebido os ministros com muito mais frequência do que antigamente. Um parâmetro de como as coisas mudaram pode ser o número de participações em um programa histórico da televisão brasileira como o Roda Viva, da TV Cultura. Até 2015, só se registrava uma presença de ministro em exercício do Supremo no centro da roda: Marco Aurélio Mello, que se aposentou do STF em 2022, havia sido entrevistado em 2012.
Entre 2015 e 2023, já foram sete os programas com ministros no foco. Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Gilmar Mendes (duas vezes), Marco Aurélio Mello (três vezes) e Cármen Lúcia foram os entrevistados, esta última na semana passada.
Os magistrados também deixaram de lado o receio de se verem associados a figuras políticas, e se sentem à vontade confraternizando com grupos polarizantes como o MST ou o lulismo, como atestam vários fatos dos últimos quatro meses.
Após a diplomação de Lula como presidente pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), os ministros Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski participaram de uma comemoração para o petista na casa do advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay. Em novembro de 2022, Luís Roberto Barroso jantou em Nova York com Cristiano Zanin, advogado que defendeu Lula na Lava Jato. Mais recentemente, Lewandowski demonstrou sua simpatia pelo MST.
Reportagem de fevereiro da Gazeta do Povo recorda que a Constituição veda aos juízes a participação em “atividade político-partidária”; que o artigo 4º do Código de Ética do STF preconiza, entre os “princípios éticos que norteiam a conduta funcional dos servidores” do Supremo, “a impessoalidade e a imparcialidade”, além da “neutralidade político-partidária, religiosa e ideológica”; e que o Código de Ética da Magistratura, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), afirma que “ao magistrado é vedado participar de atividade político-partidária”.
Pedro Moreira, doutor em Filosofia do Direito pela Universidad Autónoma de Madrid, ressalta que há "uma vedação expressa e bastante óbvia" à atividade político-partidária, mas se espera que bons juízes queiram não só cumprir essas regras, mas ir além delas. “Há também uma série de deveres éticos que qualquer bom magistrado deve conservar: a discrição, a autocontenção, a serenidade. São virtudes que preservam a imparcialidade e constroem a imagem de que os juízes são realmente independentes do poder político. Quando um juiz faz comentários sobre a política cotidiana, expressa opiniões sobre temas morais controvertidos, faz-se presente constantemente na mídia ou em eventos e palestras, ele compromete essa imparcialidade. Ou seja: todo mundo passa a se interessar por como vive ou pensa o magistrado. Isso corrói a sua legitimidade”, afirma.
Além disso, como observa o advogado especialista em compliance Jorge Derviche Casagrande, a vedação à “atividade político-partidária” abrange muito mais do que a mera proibição de colaborar com partidos. “Não significa somente que o magistrado não pode ser filiado a um partido. Significa que ele não pode ingressar em situações com cunho político-partidário, porque já vai estar ferindo um preceito que existe em todos os países de tradição jurídica ocidental moderna, do juiz imparcial”.
A consequência natural de atuar contra esse princípio, para Derviche, é a crise de credibilidade das instituições. Ele ressalta, além disso, que, na medida em que o STF se torna ator político, a natureza vitalícia do cargo de ministro perde seu sentido. “A vedação de participar de atividade político-partidária serve não somente para proteger o magistrado, proteger a imagem do Judiciário, mas também para proteger a nossa democracia e o nosso sistema republicano. O cargo de ministro do STF não pode virar um cargo político, porque seria um cargo político vitalício. Se a gente tem um cargo político vitalício, a gente tem uma ditadura. Todo cargo político que nós temos tem mandato, porque a vontade do povo muda, e a gente tem que obedecer à vontade da população. Se temos políticos com mandatos vitalícios, temos uma ditadura. Simples assim”, comenta.
Princípio da autocontenção é desprezado pelos atuais ministros, dizem juristas
Um princípio importante para o Poder Judiciário, o de sua autocontenção – isto é, a atitude de evitar envolvimento em matérias que não lhe competem ou que poderiam ferir sua imagem de imparcialidade –, tem sido desprezado pelos atuais ministros do Supremo, na visão dos juristas consultados pela Gazeta do Povo.
Adriano Soares da Costa, especialista em Direito Eleitoral, aponta os excessos já costumeiros em declarações sobre assuntos políticos como um exemplo grave dessa falta de autocontenção. Ele cita o ministro Gilmar Mendes que, em 2015, chamou o plano do PT no poder de “cleptocracia” em um seminário do qual participou; mais recentemente, em 2023, o mesmo magistrado definiu apoiadores de Bolsonaro como “gente do porão”. Para Soares da Costa, as manifestações são especialmente graves porque tratam de agentes políticos que fazem parte do poder e serão julgados por Gilmar Mendes em ações.
“Havia antes uma autocontenção dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Tenho a convicção de que um dos fatores fundamentais da mudança de comportamento foi a introdução da TV Justiça [criada em 2002], com constante publicidade dos julgamentos. Isso deu uma visibilidade e uma exposição muito grandes e fez com que houvesse um protagonismo maior dos ministros do Supremo. Essa é uma situação única no mundo. Eu não conheço, salvo melhor juízo, nenhuma corte constitucional cujos julgamentos sejam veiculados como os nossos são. Isso tem um aspecto de transparência, de um lado, mas, de outro lado, tem o aspecto da exposição muito grande”, comenta.
Para o jurista, julgamentos com ênfase em assuntos políticos, como os do Mensalão e do Petrolão, foram, junto com o televisionamento das sessões, o estopim para a espetacularização do STF. “O Mensalão talvez tenha sido o mais midiático no primeiro instante, mas, se formos lembrar, essa característica também passou para outros tribunais, como o Tribunal Superior Eleitoral, cujos julgamentos veiculados tiveram forte repercussão – um deles, por exemplo, da chapa Dilma-Temer. Naturalmente, ao longo do tempo, essa exposição constante dos julgamentos se transformou em exposição constante de entrevistas, de participação em programas jornalísticos para discutir temas do momento – mesmo temas que ainda seriam ou serão julgados pela Corte. E os ministros começaram a manifestar opiniões, inclusive fora dos autos, antes das discussões no fórum próprio da Corte”, observa.
Isso não acontece no país cuja Corte serve de inspiração para a brasileira, os Estados Unidos. “Na Suprema Corte americana, os julgamentos são fechados. Você tem a abertura para as discussões, mas o que foi discutido na integralidade na Corte é protegido. Você não vê os embates entre os ministros. Os ministros não participam de programas jornalísticos. Há programas históricos nos Estados Unidos, como o 60 Minutes [da rede CBS], e os ministros não participam. São raros os pronunciamentos públicos dos ministros; ocorrem normalmente em eventos acadêmicos sobre temas jurídicos importantes, em que esses ministros fazem exposições muito cautelosas”, diz Soares da Costa.
Influência sobre cortes inferiores já é evidente
Um dos diversos problemas da transformação dos ministros em personalidades midiáticas é a influência que isso exerce sobre cortes inferiores.
“Se eles veem que o STF, que é o órgão supremo, está se comportando mal, fazendo julgamentos de forma casuística, manifestando-se politicamente, o que isso pode espalhar? Uma malcriação generalizada. Daqui a pouco, poderemos ver desembargadores protestando junto com o pessoal do MST. E nada vai poder ser feito com relação a isso. Se eu for um proprietário de terra, que confiança eu vou ter de que um julgamento vai ser feito de forma imparcial?”, questiona Derviche.
Para Pedro Moreira, outro impacto nas cortes inferiores tende a ser "a percepção geral de que tudo é pura vontade arbitrária". "Parece-me que isso também contaminou a jurisdição ordinária, ainda que eu sinceramente acredite que os juízes ordinários têm muito mais apreço pela autocontenção do que a Suprema Corte", diz.
A influência que os posicionamentos políticos dos ministros já exercem fica clara em alguns grupos e movimentos de juízes. Magistrados da Associação de Juízes para a Democracia, por exemplo, fizeram campanha explícita pela soltura de Lula em 2019. O viés é tão evidente que a associação tem uma etiqueta própria dentro do site do PT para artigos relacionados a ela.
“É um exemplo típico de uma associação que une juízes em torno de temas políticos. Então é legítimo este tipo de associativismo? É legítimo este tipo de conteúdo? Daqui a pouco você tem associação de juízes conservadores ou de direita com algum nome ambíguo qualquer, porque essa ‘democracia’ [do nome ‘Associação de Juízes para Democracia’] é uma democracia ideologicamente vincada em valores de esquerda”, critica Soares da Costa.
“Ora, se o juiz acha que o seu mister, a sua judicatura, não está sendo suficiente para uma melhora da sociedade, se ele acha que deve ter manifestações e atuação políticas, retire a toga. Viva para a vida política. O [ex-juiz Sergio] Moro fez isso, saiu da toga. Foi para a vida política. Não são passíveis de conciliação a atividade da magistratura e a atividade política”, complementa.
Tal como a família real britânica, ministros do STF viraram alvo das colunas de fofoca
Ao buscarem sem pudor o protagonismo nas principais discussões políticas e sociais, os ministros do Supremo acabaram ganhando um tipo de atenção pública improvável para juízes de direito: tornaram-se personagens de colunas de fofoca.
Em 2021, o colunista Léo Dias, do portal Metrópoles, noticiou o começo de um romance entre um ministro do STF e "um dos maiores ícones da beleza do Brasil nos anos 80". "Os dois são amigos de longa data e, ultimamente, o trabalho os reaproximou. A amizade evoluiu para um relacionamento. Eles passaram juntos o feriado de 12 de outubro, em hotel luxuoso de São Paulo", escreveu.
Internautas começaram a fazer suposições sobre quem seriam o magistrado e a modelo mencionados por Léo Dias. O boato de que o ministro Luiz Fux e a modelo Luiza Brunet estariam namorando se espalhou pela internet. Em 2022, Brunet desmentiu a história em uma entrevista.
Na semana passada, a coluna "Observatório dos Famosos", do UOL, deu destaque à presença do ministro Dias Toffoli em um show da cantora Ivete Sangalo. “Chamou a atenção deste colunista a conversinha ao pé do ouvido do magistrado com uma morena não identificada”, afirmou o redator da coluna.
Jorge Derviche faz um paralelo dessa situação com o interesse que os veículos de fofoca britânicos têm na família real do Reino Unido. “Eles [os ministros do STF] são a nova realeza. É como a relação dos tabloides com a realeza britânica. São uma nova realeza, porque têm cargos vitalícios e mostram que têm poderes excelsos. Fazem o que querem, viraram príncipes. São os príncipes do Brasil. Tenho certeza de que o nosso atual presidente da República não consegue contrapô-los, assim como o presidente anterior não conseguiu. Eles mandam no Brasil, e agora estão vestindo a coroa para que todo mundo veja”.
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