O ativismo judicial marcou a atuação do Judiciário durante os quatro anos de gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL), com o Supremo Tribunal Federal (STF) e outras cortes da República – como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) – assumindo papéis que antes cabiam somente ao Executivo e ao Legislativo. A partir de 2023, com Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na Presidência, o cenário deve sofrer algumas mudanças.
Por um lado, bandeiras da esquerda como legalização do aborto, promoção da ideologia de gênero, controle da expressão nos meios digitais, desencarceramento em massa, descriminalização das drogas e proibição do homeschooling sofrerão forte oposição no Congresso, onde a direita elegeu dezenas de parlamentares. O Judiciário pode ser o atalho por meio do qual a esquerda buscará avançar essa pautas sem passar pelo Congresso.
O STF tem alguns julgamentos pendentes nas pautas de costumes. Em relação ao aborto, por exemplo, a ADPF 442, que discute a descriminalização da prática até a décima segunda semana de gestação, poderá entrar em pauta. Também está parado há anos o Recurso Extraordinário (RE) 635.659, sobre a liberação do porte de drogas para consumo pessoal, que pode ganhar andamento com um Executivo mais tolerante ao tema.
Quanto à liberdade de expressão nas redes, os anseios de regulação da mídia de Lula vão mais ou menos ao encontro das ações do Judiciário nos últimos anos: ambos defendem a ideia de que é preciso impedir a propagação de alguns tipos de discurso, e é possível que os dois poderes sejam aliados na tendência de cerceamento da liberdade de expressão. Alguns especialistas temem até mesmo que, nos próximos anos, as regras estabelecidas pelo TSE contra fake news sejam usadas em julgamentos não relacionados com as eleições.
Por outro lado, um presidente da República mais receptivo ao ideário do dito “progressismo” poderia amainar o ímpeto ativista em alguns temas, uma vez que o Judiciário já não se veria mais como único canal para promover uma agenda progressista. É o que pensa Alessandro Chiarottino, doutor em Direito Constitucional pela USP.
“Quando você tem um governo conservador, como era o caso do governo Bolsonaro, o ativismo tende a ser maior. Com o governo de esquerda, a gente deve esperar uma diminuição do ativismo, pela simples razão de que o próprio governo já teria iniciativas que vão no sentido em que o STF tem ido nos últimos anos. Há certa coincidência de pensamento, de visão de mundo”, diz.
Este alinhamento ideológico entre Executivo e Judiciário, segundo Chiarottino, deve causar turbulência política com o Congresso, no qual a direita ganhou muitas novas cadeiras. “Dada a configuração do Congresso, a gente pode esperar um período de conflitualidade política mais elevada. Deve haver um acirramento da batalha política por temas sensíveis, por temas de costumes. Vai ser um período bastante agitado”, afirma.
Chiarottino aposta que justamente para transmitir uma imagem de independência em relação ao Executivo, o STF deverá tentar se opor, em alguns pontos, à figura de Lula. “Penso até – e pode parecer paradoxal para alguns – que ele vai tentar mostrar uma cara independente”, afirma.
E como fica a possibilidade de impeachment dos responsáveis pelo ativismo judicial?
Um dos desejos de parte da população durante as eleições de 2022 – que se traduziu em promessa de campanha de alguns candidatos – foi a chegada de congressistas dispostos a tirar do Judiciário os ministros responsáveis pelo ativismo judicial dos últimos anos.
A presença de Lula no Executivo, contudo, deve desanimar eventuais tentativas de impeachment de ministros do STF por parte do Senado, já que o substituto da cadeira desocupada seria indicado pelo próprio petista.
Lula terá direito a nomear dois ministros do STF já em 2023, porque Ricardo Lewandowski se aposentará em maio, e Rosa Weber, em outubro do próximo ano. Com a eventual queda de um ministro por impeachment, o petista teria direito à indicação de mais um nome, o que interessa pouco a parlamentares conservadores. Além disso, a própria falta de apoio do presidente da República ajudaria a inviabilizar o impeachment.
“Com a vitória do Lula, acho que o cenário de impeachment é menos provável. Sem o apoio político da Presidência da República, o impeachment fica muito difícil. O presidente tem a sua influência dentro do Senado. Ainda que não tenha capacidade de veto técnica, ele tem influência muito grande sobre senadores. Não vejo isso caminhando. Se tivesse sido reeleito o presidente Bolsonaro, isso caminharia de forma muito mais correta”, opina Chiarottino.
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