Ouça este conteúdo
No dia 6 de março, a ação do Ministério Público Federal (MPF) que tenta cassar as concessões de rádio da Jovem Pan sofreu derrota parcial: a Justiça Federal indeferiu o pedido de liminar que concederia “direito de resposta da população”, na forma de veiculação obrigatória de propaganda sobre a confiabilidade das urnas eletrônicas.
Ao opor o Judiciário ao Ministério Público, o episódio ilustrou a diferença entre o ativismo judicial, normalmente maior foco de atenção, e outro fenômeno, ainda pouco conhecido do público: o ativismo ministerial.
O conceito é defendido pelo professor e promotor do MPGO Samuel Fonteles, que considera o tema “negligenciado”. Ele explica que a questão, aparentemente jurídica, acaba acarretando implicações no campo da política: “promotores não eleitos decidem os rumos de uma sociedade”. Assevera: “Em alguns municípios deste país, cidadãos têm sido governados por promotores”.
Implantação do veganismo nas escolas públicas
Muitos exemplos do fenômeno ganharam o noticiário nos últimos anos. Em 2019, uma promotora atraiu atenção internacional ao celebrar TACs (termos de ajustamento de conduta) para que quatro prefeituras do interior da Bahia eliminassem a proteína animal e passassem a servir comida exclusivamente vegana em creches e escolas para mais de 30 mil alunos. A promotora tinha histórico de palestras e atuações judiciais em favor dos direitos dos animais.
A polêmica provocada pelo caso levou o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) a abrir procedimento interno, citando, além de preocupações com a saúde nutricional, indícios de “captura e imposição de valores” e de “extrapolação dos limites da atuação ministerial, com uma ingerência em juízos típicos de um gestor público” – justamente uma das características do ativismo ministerial.
Cotas raciais inexistentes em lei
Em outro exemplo, em 2018, após agitação nas redes sociais em reação ao teaser de uma nova novela da Rede Globo, o Ministério Público do Trabalho (MPT) citou a “repercussão” para notificar a emissora sobre a falta de personagens negros e pardos, expedindo 14 recomendações à Globo, entre as quais a realização de um censo racial interno.
Episódio parecido voltou a ocorrer em 2021, quando o MPT deu parecer favorável a uma ação milionária contra uma corretora de investimentos em Porto Alegre, apenas em razão da repercussão nas redes sociais de uma foto da equipe da empresa, predominantemente branca e masculina.
O problema vem sendo reconhecido
Seja em 2018, seja em 2021, não existia qualquer lei no Brasil que exigisse cotas raciais em empresas. Marcelo Rocha Monteiro, procurador de Justiça do MPRJ, explica que isso configura um grave problema: “Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer coisa alguma senão por força de lei, portanto trata-se de uma ilegalidade”. Autor de livros e palestras sobre o ativismo do Judiciário, ele enxerga o mesmo problema no Ministério Público: “Tão nefasto quanto o ativismo judicial”.
O problema já se tornou tão endêmico que a própria Corregedoria Nacional do CNMP editou, em junho 2020, texto alertando que os membros do MP respeitassem os limites de suas atribuições, fazendo apenas uma “análise objetiva” da conformidade dos atos dos gestores públicos em relação à lei, sem se deixarem levar pela opinião pessoal sobre o mérito das políticas públicas.
O opcional se torna obrigatório
Monteiro explica que a expedição de “recomendações” pelo Ministério Público (a exemplo do caso da novela da Globo), como o nome indica, não é de cumprimento obrigatório, mas significa, em essência, “ameaça de processo”: “A simples ameaça de processo sem qualquer base legal, vinda de um órgão estatal, já é uma afronta ao Estado de Direito”.
Uma das funções institucionais do Ministério Público é justamente entrar com processos cíveis ou criminais contra indivíduos ou instituições, quando violam a lei ou causam danos à coletividade.
André Uliano, professor e membro do MPF, lembra que esses processos serão, em última análise, decididos pelo Judiciário, que pode servir de freio relevante ao Ministério Público, citando como exemplo justamente o processo contra a Jovem Pan. Autor de livro sobre o ativismo judicial, ele explica: “Por isso o ativismo judicial é o grande foco: porque ele acabará decidindo o caso concreto em última instância”.
O Judiciário nem sempre serve de freio
Apesar de confiar no Judiciário para dissipar eventuais abusos, Uliano reconhece que “responder ao processo já é um custo” e “pode acabar impondo um custo injusto sobre uma conduta lícita. Por meio da intimidação, pode forçar alguém que não tem condições de responder ao processo a conformar-se, mesmo sem previsão legal para aquela conduta”.
É justamente nisso que consistem os termos de ajustamento de conduta (TACs), como os que a promotora celebrou com prefeituras baianas, obtendo assim sucesso em ver implantado o cardápio infantil vegano.
A página do CNMP explica que os TACs têm “finalidade de impedir a continuidade da situação de ilegalidade, reparar o dano ao direito coletivo e evitar a ação judicial”. Como a lei não exige homologação judicial para os TACs, quem acaba tomando a decisão final sobre existir ou não “situação de ilegalidade” é o próprio membro do Ministério Público. E, uma vez assinado o TAC, ele se torna coercitivo, podendo o seu descumprimento inclusive render multas.
Inquéritos civis como instrumento de pressão
Outra forma pela qual o Ministério Público pode exercer atuação coercitiva sem processo judicial é mediante a instauração de um inquérito civil. O instituto é destinado a colher provas de conduta ilícita do alvo, para embasar a propositura de eventual ação civil pública contra ele. Durante o procedimento, o membro do MP pode requisitar certidões, informações, exames ou perícias, dando prazo para cumprimento, desde que considere esses dados relevantes para esclarecer a possível ilicitude. Constitui crime a recusa, retardamento ou a omissão em fornecer as informações requisitadas.
Um exemplo é um inquérito civil em andamento contra as maiores redes sociais no Brasil, aberto em 2021 pelo mesmo procurador do MPF que pediu a cassação das concessões da Jovem Pan. Ao longo do inquérito, vêm sendo encaminhadas às plataformas requisições de informação que mais se parecem com sugestões ou comandos sobre a atividade empresarial das plataformas.
Em um dos episódios, no dia 6 de janeiro de 2022, o Twitter foi inquirido a respeito dos motivos de não ter implantado no Brasil opção de denunciar conteúdo desinformativo sobre a Covid.
Na mesma requisição, o procurador perguntou quais eram os critérios adotados pela plataforma para conferir selo de verificação de identidade aos usuários. Em particular, perguntou se incluíam um boicote aos usuários que propagassem desinformação sobre a Covid. A requisição foi amplamente interpretada à época como reação ao selo que tinha sido concedido no dia anterior à youtuber Bárbara Destefani, conservadora, provocando rebuliço nas redes sociais.
O problema da politização
As requisições de informação feitas nesse inquérito do MPF contra as redes sociais foram citadas pelo jornal espanhol La Gaceta, que disse que levam o observador “a se perguntar se não há uma politização de instituições públicas no Brasil”.
Membros do Ministério Público ouvidos pela Gazeta do Povo concordam que a politização é sempre um risco, e enfatizam a importância da neutralidade dos agentes públicos, que devem abstrair de suas convicções pessoais ao atuarem no exercício do cargo.
Uliano explica: “Membros do MP não existem para utilizar a Justiça para impor pautas partidárias de grupos específicos, [...] servem para resguardar o Estado de Direito, isto é, o quadro jurídico que se aplica de modo isonômico em relação a qualquer pessoa”.
Fonteles, que reivindica mais atenção para o ativismo ministerial, diz que esse problema mais amplo também é negligenciado. Em palestra para a Escola Nacional do MPPR, comentou: “Muito se fala no Brasil em laicidade religiosa”, a qual chamou de “marco civilizatório”, mas comparou: “Nunca vi alguém falar em laicidade política”.