Os grupos que militam pela legalização do aborto no Brasil pretendem reforçar os laços com os países em que o tema avançou nos últimos anos para reproduzir as táticas em solo brasileiro. Em meados de fevereiro, um congresso virtual reuniu cerca de 20 palestrantes da América Latina para compartilhar estratégias para a legalização do aborto na América Latina. A reportagem da Gazeta do Povo acompanhou o evento que foi organizado pelo Instituto ANIS (que se classifica como um instituto de bioética) e as (autoproclamadas) Católicas pelo Direito de Decidir, além do Doctors for Choice Brazil, da Redes da Maré, da Casa das Mulheres da Maré e do CEPIA (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação). O congresso, com o nome de “Foro latino-americano de Serviços de Aborto Legal”, teve 928 inscrições, de 23 países.
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Um dos objetivos do evento era promover o aprendizado sobre táticas bem-sucedidas para a legalização, ainda que parcial, do aborto. Nos últimos anos, países como Argentina, Colômbia (que acaba de permitir o aborto de bebês de seis meses de gestação), Chile, Uruguai e México tiveram mudanças em suas legislações e aumentaram a tolerância com o aborto. Ao fim dos dois dias de evento, uma das principais conclusões foi a de que as mudanças nesse campo geralmente acontecem de forma gradual, e nem sempre com medidas de impacto. Em comum, as críticas ao papel da religião e ao “excesso” de objeções de consciência.
Apesar das intenções dos organizadores do congresso, nem mesmo casos apresentados como sendo de sucesso cumpriam os requisitos. No Uruguai, por exemplo, os próprios números apresentados pelo palestrante Leonel Briozzo o desmentiram. Ele afirmou que houve uma redução no número de abortos após a legalização da prática no país, em 2012. Mas o gráfico mostrado por ele mostra que os números caíram apenas nos últimos dois anos, após altas expressivas nos primeiros anos pós-legalização. No agregado, houve um aumento de 22,6% entre 2013 e 2020. O mesmo palestrante afirmou que a legalização do aborto tem até mesmo o efeito de reduzir a mortalidade infantil.
Objeções de consciência
Entre os alvos dos palestrantes estavam as cláusulas de objeção de consciência, que permitem aos médicos o direito de não realizar abortos caso isso fira as convicções pessoais dele. “Cremos que alguns colegas fazem um excesso de uso das objeções de consciência, particularmente nos casos de segundo trimestre”, disse Analia Messina, da Argentina. Laura Gil, militante da Colômbia, disse algo semelhante: “O abuso da objeção de consciência que se converte em uma barreira”. Miguel Gutierrez, do Peru, se queixou da “falsa objeção de consciência”.
Outro alvo dos palestrantes foi a influência da religião. Em uma região com altos percentuais de cristãos, "somos um estado laico, mas que em que 92% dos habitantes têm uma profissão de fé, e esse é um limitante", disse Wilfredo Leon, do Equador. "As pessoas pensam que o aborto é imoral porque a Igreja Católica diz", afirmou o mexicano Alfonso Carrera Riva Palacio. Ele mostrou um slide em que a palavra “pecado” aparece como uma das “barreiras” ao acesso ao aborto.
Os participantes afirmaram que, além de pedir mudanças na legislação, é preciso também atuar para mudar a cultura dos países. Ana Cristina Gonzalez Velez, da Colômbia, pediu uma “transformação cultural” que comece nos primeiros anos da faculdade de medicina, para que o tema seja abordado “de uma perspectiva de direitos” - ou seja, que as faculdades de medicina adotem uma posição abertamente favorável ao aborto, em vez de apenas ensinarem os aspectos técnicos e científicos da prática.
Brasil
Os palestrantes brasileiros lamentaram o que chamaram de "retrocessos" que o país tem vivido desde 2018 - incluindo, por exemplo, uma portaria do Ministério da Saúde que exige a notificação às autoridades policiais quando uma paciente quiser fazer um aborto depois de afirmar ter sido estuprada.
Para Ilana Ambrogi, pesquisadora da Fiocruz, as restrições ao aborto no Brasil são fruto de uma “ideologia patriarcal”. "Não há qualquer justificativa médica, clínica ou fisiológica para que o aborto medicamentoso seja uma prática necessariamente hospitalar", disse ela. Ou seja: para Ilana, ao contrário do que recomenda a bula de remédios para esse fim e a recomendação das autoridades sanitárias, a prática poderia ser realizada em clínicas, ou até mesmo em casa - o teleaborto.
Helena Paro, representante do Doctors for Choice Brazil e uma das pessoas responsáveis pelo evento, citou três prioridades para a causa do aborto no país: liberar a entrega do misoprostol pelo Correio (o que entidades pró-aborto já vinham tentando fazer há mais de um ano, citando como pretexto a pandemia), oferecer o medicamento abortivo em farmácias e unidades de saúde da família e, por fim, registrar a mifepristona na RENAME (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais). Isso faria com que esse outro medicamento abortivo passasse a ser utilizado no SUS. As reivindicações foram incluídas em uma carta elaborada ao final do evento e assinada pelos participantes. O documento será enviado à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A maioria dos palestrantes do congresso era de médicos, que utilizaram termos técnicos e nem sempre prenderam a atenção da plateia. Mas, ao encerrar o evento, Jacqueline Pitanguy, do CEPIA, evidenciou que, em última instância, o congresso teve uma causa política. “Esse é um fórum científico, mas é também um foro político, de luta, resistência, de avanço, e vamos ver se nós conseguimos tirar daqui alguma estratégia que seria sumamente importante especialmente para os países que vão ter eleição em 2022, como o Brasil”.
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