“Isso parece uma piada de mau gosto com as atletas” – essa foi a reação da atleta belga Anna Vanbellinghen ao comentar a participação da levantadora de peso transgênero neozelandesa Laurel Hubbard – homem biológico que passou a se identificar como mulher trans em 2013 – na categoria feminina nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2021.
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Vanbellinghen, que compete na mesma categoria que Hubbard (acima de 87 quilos), disse que não é contrária à inclusão no esporte, mas que isso não pode acontecer “às custas dos outros”. “Qualquer pessoa que tenha treinado levantamento de peso em alto nível sabe que essa situação é injusta para o esporte e para as atletas”, afirma a belga.
Laurel Hubbard, hoje com 43 anos, até 2013 chamava-se Gavin Hubbard. Na segunda-feira (21), o Comitê Olímpico da Nova Zelândia confirmou que ela havia sido selecionada para a equipe do país nos Jogos Olímpicos de 2021, que terão início em 23 de julho – a decisão a tornou o primeiro atleta transgênero classificado para a competição.
Nos últimos anos, Hubbard tem colecionado uma série de conquistas nas disputas com mulheres – foi medalha de ouro no Australian International & Australian Open 2017, dando à Nova Zelândia o primeiro título internacional feminino de levantamento de peso; ganhou duas medalhas de ouro nos Jogos do Pacífico de 2019; e conquistou o campeonato mundial de halterofilismo em 2020. Em todas as competições que passou, ele atraiu críticas de mulheres que se viam injustiçadas pela disparidade física.
Na sexta-feira (25), o comitê dos Jogos Olímpicos de Tóquio destinou uma vaga no evento esportivo para a levantadora de peso tonganesa Kuinini Manumua, de 21 anos, que perdeu a vaga para Hubbard. Tecnicamente o convite tem relação com vagas destinadas pela organização dos Jogos Olímpicos para atletas de países com pouca tradição no esporte. De acordo com o portal UOL, entretanto, o convite teria sido feito após as críticas à organização do evento por permitir que um homem biológico dispute medalhas entre as mulheres.
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Mais atletas trans podem competir nos Jogos Olímpicos de Tóquio
A participação de Laurel Hubbard foi possível por causa de mudanças nas diretrizes do Comitê Olímpico Internacional (COI) que, a partir de 2015, permitiu que homens que se identificam como mulheres disputem na categoria feminina desde que seus níveis de testosterona estejam abaixo de 10 nanomoles por litro por pelo menos 12 meses. Outro requisito é a declaração da identificação como mulher por um período mínimo de quatro anos – não há necessidade de cirurgia de mudança de sexo. Não existem restrições para mulheres biológicas que se identificam como homens.
Enquanto os comitês dos países participantes dos Jogos Olímpicos de Tóquio ainda encerram a seleção dos competidores, mais atletas transgênero podem aumentar o número de homens biológicos que competirão com mulheres no evento.
Cecé Telfer, velocista jamaicana naturalizada norte-americana que almejava disputar a prova de 400 metros com barreiras em Tóquio, era um dos atletas trans que tinha grandes chances de participar do evento. Na quinta-feira (24), entretanto, a Federação Internacional de Atletismo indeferiu sua participação, uma vez que ela não reduziu suficientemente os níveis de testosterona a ponto de cumprir os critérios do COI.
Até recentemente, Telfer disputava competições masculinas – em 2016, ficou na posição 200º na prova de 400 metros com barreira na liga da Associação Nacional de Atletas Universitários (NCAA); em 2017, ficou em 390º lugar. Após fazer a transição de gênero, em 2019 disputou a mesma prova, porém na categoria feminina, e ficou em primeiro lugar, dando o título inédito à universidade Franklin Pierce, de New Hampshire, nos Estados Unidos.
A mulher transgênero Chelsea Wolfe, ciclista, de 27 anos, também pode estar nos jogos de Tóquio. Homem biológico, Wolfe se classificou em quinto lugar no Campeonato Mundial de BMX Freestyle, é a primeira reserva da equipe feminina dos Estados Unidos e competirá caso alguma das atletas titulares fique impedida de participar do evento.
Há também atletas como a corredora norte-americana Nikki Hiltz e a jogadora de futebol Quinn – ambas são mulheres biológicas que se autodeclaram “não-binárias” – isto é, nem homem nem mulher. As duas poderiam disputar competições tanto na categoria feminina quanto masculina, mas optaram por permanecer competindo entre mulheres.
Nos Jogos Paralímpicos de Tóquio, com início em 24 de agosto, em que competem apenas esportistas com algum tipo de deficiência, também há atletas transgênero que podem ganhar uma vaga. Esse é o caso da australiana Robyn Lambird, na modalidade para-atletismo, e da velocista italiana Valentina Petrillo.
Em 2017, a italiana, que possui deficiência visual, declarou-se mulher transgênero. No ano passado, sete meses após a última competição na categoria masculina, Petrillo disputou o Campeonato Paralímpico Italiano na categoria feminina e conquistou o ouro nas corridas de 100, 200 e 400 metros, além de estabelecer um novo recorde na corrida de 400 metros; tudo isso com 47 anos de idade.
Decisão do COI sobre atletas trans é precipitada, diz médico do esporte
Para Bernardino Santi, ortopedista e médico do esporte, que já participou de quatro edições dos Jogos Olímpicos como profissional de saúde, ainda não há evidências científicas que levem a um consenso que garanta segurança a todos os atletas, incluindo os próprios esportistas transgênero, durante as competições. Para ele, as definições do COI sobre o tema são precipitadas.
“Hoje é muito precoce, não há consenso científico para dizer que uma mulher trans se equipara a uma mulher biológica. Pelo contrário, há muitos trabalhos científicos que rebatem essa argumentação. Existem também argumentações que apontam o contrário, mas se for fazer um levantamento de literatura, é um número muito reduzido”, afirma.
Santi explica que o fator hormonal (a quantidade de testosterona, relacionada à maior massa muscular e óssea); a resposta muscular, de velocidade, força e explosão; a capacidade pulmonar; além do aspecto cardiológico, são alguns dos fatores que dão vantagens físicas aos atletas homens biológicos na comparação com mulheres.
“Pegando apenas a questão da bacia da mulher, por exemplo, que é preparada para a gravidez, tem muitas diferenças com relação à do homem. Com isso há um centro de gravidade diferente, uma explosão muscular diferente. Por mais que se atue na parte hormonal, há aspectos que não tem como mudar”, ressalta o médico.
Quanto à questão hormonal, o quantitativo de testosterona determinado pelo COI para homens biológico também é alvo de contestações. Isso porque os valores permitidos para mulheres trans ainda são muito superiores à média normal do organismo feminino. De acordo com Santi, esses limites precisam ser melhor debatidos, e disso dependem novos estudos.
“Não se sabe, por exemplo, até que ponto essa mudança hormonal nas mulheres trans levará a outros tipos de doença, pois não há tempo suficiente de estudo. O que garante que daqui a 10 ou 15 anos a retirada da testosterona não possa levar a um problema cardiológico, por exemplo, que traga algum risco de vida para a pessoa?”, questiona o médico. “Há muita precipitação em torno do tema e nisso não está se pensando no ser humano”, ressalta
No âmbito desportivo, Santi diz que há, inclusive, insegurança para mulheres biológicas nas competições, sobretudo em esportes de contato, o que pode gerar riscos à integridade física das atletas. “Eu quero deixar muito claro que eu entendo a angústia das pessoas trans, que querem participar e querem estar incluídas. Mas não se pode fazer essa inclusão de forma precipitada, a ponto de excluir as demais”, declara.
Medalhista olímpica afirma que debate sobre atletas trans deve ser científico e não ideológico
A medalhista olímpica pela seleção brasileira de vôlei feminino Ana Paula Henkel argumenta que o debate sobre a inclusão de mulheres trans em categorias femininas frequentemente se pauta mais pelo aspecto político e ideológico do que científico. Como consequência, ela cita que, o que era para ser um fator de inclusão, tem se tornado algo exclusivo às mulheres.
Segundo Ana Paula, muitas atletas têm se sentido bastante prejudicadas, porém sentem receio de serem rotuladas de preconceituosas ao se manifestar abertamente sobre o assunto. “É uma falácia levar esse debate para o campo da inclusão, porque isso, na verdade, exclui mulheres. A marca da campeã olímpica dos 100 metros em 2016 não a classifica para as finais da liga infanto-juvenil norte-americana masculina. É muito injusto: atletas trans baterão recordes seguidos com uma clara vantagem biológica que não pode ser ignorada”, diz a ex-jogadora.
As diversas vantagens que as mulheres trans possuem devido aos anos de testosterona desde a infância, explica ela, não são amenizados ao manter a quantidade hormonal menor do que 10 nanomoles por litro por 12 meses. “Não existe estudo que prove que esse período reverta aspectos como o coração e o pulmões maiores, maior capacidade aeróbica e cardiorrespiratória, além de outros, como nível de oxigênio no sangue, densidade óssea e fibra muscular. Isso tudo não é revertida em um ano apenas depois de passar 20 ou 30 anos com altas doses de testosterona”, aponta.
Ana Paula argumenta que mesmo pequenas quantidades de testosterona a mais no organismo feminino podem resultar em segundos de diferença em uma prova, o que pode definir uma medalha de ouro ou um recorde olímpico. “O teto de testosterona que uma trans olímpica pode ter é até três vezes maior do que uma mulher. No corpo de uma atleta, um pouquinho a mais desse hormônio, que é o suprassumo do esporte, faz uma grande diferença”, afirma.
“A identidade individual das pessoas é importantíssima e deve ser respeitada, mas o pilar mais sólido do esporte é a identidade biológica. O esporte é feito da ciência, da biologia humana; fugir disso é uma desonestidade”, destaca.
Atletas tentaram impedir inscrição de homens biológicos nas modalidades femininas
Em abril de 2020, atletas e entidades de mais de 30 países enviaram ao Comitê Olímpico Internacional uma carta pedindo a suspensão das diretrizes que autorizam homens que se identificam como mulheres disputem nas categorias femininas.
“A simples redução dos níveis de testosterona por um ano não anula a vantagem masculina sobre as atletas femininas. Permitir que os atletas do sexo masculino se identifiquem como competidoras do sexo feminino é irresponsável, negligente e perigoso. Ao adotar as diretrizes para transgêneros de 2015, vocês abandonaram seu dever de proteger a segurança e a integridade das mulheres e dos esportes femininos”, cita a carta, que não produziu efeitos.
Na época, a levantadora de peso norte-americana Beth Stelzer, fundadora do movimento Save Women's Sports afirmou que as novas diretrizes são uma “tragédia” para o esporte”.
“Um homem não pode se tornar uma mulher diminuindo sua testosterona. Os direitos das mulheres não devem terminar onde os sentimentos de alguns homens começam”, disse a atleta.
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