Voluntárias ofertam terapia
Há um ano, a psicóloga clínica Norma Melhorança, em parceria com mais três profissionais, oferece terapia para carrinheiros na sede do Instituto Lixo e Cidadania, no Jardim Botânico. O projeto, intitulado "Alma", é inédito, está em fase de avaliação, mas já permite à coordenadora do programa tirar algumas conclusões.
A primeira é de que homens e mulheres que catam papel vivem uma forte crise de identidade, causada não pelo estigma que o trabalho que fazem carrega, mas pelo fato de se sentirem invisíveis. "Eles não se sentem vistos por ninguém, a não ser quando atrapalham o trânsito. É como se a sociedade desejasse que não existissem o que chamo de desconfirmação da presença. É perverso", diz Norma que divide o atendimento com Maria Ângela Nehring, Helena Santa-Maria e Martha de Melo. A invisibilidade, diz, tem uma dose tamanha de crueldade que muitos carrinheiros adoecem, vítimas de perturbações mentais e emocionais, agravadas pelo ambiente em que vivem, sujeito à violência, miséria e abandono. "Nosso trabalho é ajudá-los a desmobilizar essas condicionantes e ir à luta", explica Norma.
Joana (nome fictício), 45 anos, passou duas décadas quase metade de sua vida num depósito de lixo. Ela fazia parte da categoria que abriga os mais pobres entre os já pobres carrinheiros. O regime a que se submetem lembra muito aquele imposto a imigrantes europeus e japoneses depois da Abolição da Escravatura: força de trabalho era trocada por casa, comida e alguns tostões. "É o pior lugar. Qualquer pessoa que morou num espaço assim diz", desabafa.
O assunto é tabu. Dia mais, dia menos, alguém pode precisar novamente dos favores de um atravessador e bater com a cara na porta. Joana, que agora tem casa própria, torce para que esse dia não chegue. O medo é natural para alguém que chegou a dividir o teto com cinco famílias uma divisória de madeira era o limite. O abrigo, na verdade, era para pernoitar. "Eu fazia duas longas saídas por dia."
Maria (nome fictício), 45 anos, teve experiência semelhante: foram 12 anos de barracão. Criou três filhos nesse regime de guerra, até ter de socorrer uma das meninas de uma tentativa de abuso. "A miséria é o pior. Não tinha onde tomar banho. E era perigoso", comenta. Hoje, Maria paga R$ 350 de aluguel por uma casa na Vila das Torres, mas sua contabilidade está por um triz. Já falou com o dono de um depósito e acertou o dia da mudança. Vai ter de voltar atrás. "Não vejo saída. Sei cozinhar, mas sou negra. Quando me olham, dizem que não há vaga."
Há quem resista à sedução dos barracos criando vínculo com as cooperativas, a exemplo de Manuel Francisco de Oliveira, 45 anos, e sua filha Cristiane Rodrigues Mariano, 22. Eles saem todos os dias de Almirante Tamandaré para trabalhar na Lixo e Vida, que funciona em forma de cooperativa. Ele é carpinteiro de formação, mas se acidentou e partiu para o carrinho, até descobrir sofrer de hanseníase. Encontrou apoio na turma da sociedade. Cristiane faz o caminho inverso procura no grupo um impulso para se firmar profissionalmente em outra área. "Isso é muito sofrido", dizem mas melhor do que ficar refém dos atravessadores.
Alerta
A situação dos barracões clandestinos mobiliza a Fundação de Ação Social de Curitiba (FAS). Cerca de 25 Centros de Referência em Assistência Social (Cras) atendem 30 territórios da capital, acompanhando as famílias e motivando a vinculação com associações cadastradas, de modo a evitar a espoliação. Mas a resistência é grande, de acordo com a socióloga Ana Ghignone, da Diretoria de Geração de Trabalho e Renda da FAS.
A rapidez com que os carrinheiros migram entre um depósito e outro dificulta o mapeamento e mesmo a formação de um banco de dados. Outro agravante é a ausência de registros desses barracões. Não há como fazer parcerias com organizações clandestinas explica a representante da FAS. A Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SMMA) também criou um plano de ação para mapear o setor e oferecer melhores condições aos trabalhadores. Um projeto, em estudos, estabelece espaços comuns para guardar o lixo, fora das casas costume que gera atritos com vizinhança e risco à saúde das famílias. É um passo, diz a assessora técnica da secretaria, Marilza Oliveira Dias, para quem quer se livrar da dependência do depósito; é meio caminho para formar uma rede de apoio aos carrinheiros.
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