O edital de concessão do sistema de transporte coletivo de Curitiba foi lançado pela Urbanização de Curitiba S/A (Urbs), em 2010, sem a aprovação jurídica do próprio órgão, contrariando a Lei de Licitações (8.666/93). Segundo relatório preliminar da Comissão de Auditoria da Urbs divulgado ontem, o edital sofreu alterações que não foram submetidas à análise do departamento jurídico e nenhuma das recomendações feitas pelos advogados com base no rascunho do edital foram acatadas.
O artigo 38 da Lei de Licitações prevê que "as minutas de editais de licitação, bem como as dos contratos, acordos, convênios ou ajustes, devem ser previamente examinadas e aprovadas por assessoria jurídica da administração." No entendimento da comissão, as mudanças teriam reduzido a concorrência, beneficiando as 11 empresas que venceram a licitação.
Para o prefeito Gustavo Fruet (PDT), há indícios de favorecimento no processo. "O relatório aponta [favorecimento], mas para afirmar isso precisamos dar tempo ao contraditório das empresas", disse Fruet, que determinou que o documento seja encaminhado ao Tribunal de Contas do Estado, Ministério Público e Câmara de Vereadores.
Apesar da suspeita de irregularidades, o prefeito preferiu não se pronunciar sobre a possibilidade de cancelar as concessões, caso seja comprovada alguma fraude no processo. "Preciso ter cuidado nesse processo", reforçou.
Outro fato chamou a atenção da comissão o aviso de licitação foi divulgado seis dias antes do parecer jurídico da Urbs. O primeiro tem data de 23/12/2009 e o segundo de 29/12/2009. "Tal defasagem de datas é indicativa de uma irregularidade processual, eis que parte do especificado no parecer jurídico teria sido atendida somente após a publicação do aviso de licitação", informa o documento.
A orientação jurídica era de não prosseguimento da concorrência até que fossem sanadas as inconformidades apontadas. Foi recomendada a realização de estudos em quatro áreas: dotação orçamentária (para valor de outorga); idoneidade financeira (índices de liquidez e endividamento das empresas); proposta técnica (exigências de experiência na operação em vias exclusivas e com bilhetagem eletrônica); e proposta comercial (fixação da Taxa Interna de Retorno). A comissão não encontrou nenhum documento que embasasse os valores que foram fixados em edital para esses itens.
Prorrogação
Fruet informou que a auditoria criada em maio será prorrogada por mais 120 dias. Segundo o presidente da Urbs, Roberto Gregório da Silva Júnior, está em fase de finalização o termo de referência para a contratação de uma empresa para colaborar na auditoria interna. "O que já foi acordado é que todos esses trabalhos serão concluídos até o fim do ano para servir de subsídio para a repactuação tarifária no ano que vem", explica.
"Ninguém foi beneficiado", diz ex-gestor da Urbs
Presidente da Urbs no período da licitação, Marcos Isfer, rebateu a acusação de que o edital não passou pela procuradoria jurídica do órgão antes da publicação. "Foi totalmente aberto. Todo mundo leu, ficou plenamente analisado." Segundo ele, as alterações foram feitas exatamente para sanar as irregularidades apontadas anteriormente pelo jurídico. "Foram pequenas alterações, sem prejuízo ou benefício de ninguém. Isso que precisa ficar claro. Querem fazer teatro para aparecer."
Isfer argumentou que algumas modificações no edital somente traduziram em termos numéricos o que já estava expresso em índices. Em relação a afrouxamentos no edital questionados pelo relatório da comissão como a diminuição da exigência de uma frota de 150 ônibus para 125 , Isfer negou qualquer tipo de direcionamento da licitação. "Podemos dizer que deixamos mais fácil para todos, ampliou o poder de participação de todos."
Ele desmentiu também a afirmação de que os valores pagos pelas concessionárias a título de outorga foram determinados sem a realização de estudos. "Todos os cálculos foram feitos, houve acordos com as empresas e isso resultou no valor da outorga. Nisso está incluso o custo da bilhetagem eletrônica, que implantamos e as empresas pagaram", explicou.
Procurado pela Gazeta do Povo, o governador Beto Richa (PSDB), que era o prefeito na época da concessão, informou, por meio de assessoria, que não irá comentar o assunto. Já o ex-diretor de Transportes da Urbs, Fernando Gighone, não retornou o contato da reportagem até o fechamento desta edição.
Análise
Vereadores podem pedir revogação da concorrência, diz especialista
O lançamento da licitação sem análise jurídica, embora possível, indica que a Urbs assumiu o risco de futuras contestações judiciais. Para Daniel Ferreira, doutor em Direito do Estado pela PUC-SP e professor do mestrado em Direito do Unicuritiba, a comprovação de irregularidade na elaboração da concorrência pode resultar em anulação do processo. Neste caso, a Câmara de Vereadores tem poder para isso. "O Legislativo é que tem a competência para suspender o contrato", diz. Ferreira considera grave o fato de o edital ser lançado mesmo com uma recomendação expressa de não prosseguimento do certame antes que fossem sanadas dúvidas técnicas. Ele explica que a partir de agora várias ações podem ser tomadas. A administração pública pode rever seus atos; o Tribunal de Contas pode recomendar a anulação do contrato; o Judiciário pode se manifestar, se acionado por ação popular ou de concorrente do edital; e o Ministério Público pode propor uma ação civil pública por improbidade contra a gestão pública e favorecidos. "Além da própria violação dos princípios, ao que tudo indica, a lesão também é ao erário, já que há subsídio, não apenas ao usuário, porque nós todos pagamos por isso", avalia.