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Durante evento, Macaé Evaristo, ministra dos Direitos Humanos, recebeu “carta de denúncia” de associações que defendem causa autista. Entidade compara terapia à “cura gay”.
Durante evento, Macaé Evaristo, ministra dos Direitos Humanos, recebeu “carta de denúncia” de associações que defendem causa autista. Entidade compara terapia à “cura gay”.| Foto: Ângelo Miguel/MEC

Uma “carta de denúncia” contra a terapia considerada padrão ouro para crianças e adolescentes com Transtorno do Espectro Autista (TEA) tem gerado conflitos dentro da comunidade autista. O documento, que compara a ciência da Análise do Comportamento Aplicada (ABA) a tratamentos manicomiais, apontando supostas medidas coercitivas e torturas, provocou revolta em grande parte da comunidade que defende os direitos das pessoas com autismo.

A carta foi entregue oficialmente pela Associação Autistas Brasil à ministra dos Direitos Humanos Macaé Evaristo. A entrega se deu durante um seminário internacional de autismo e educação inclusiva, no último 10 de setembro, organizado pelo Ministério da Educação (MEC). Repleta de controvérsias e com argumentos frequentemente usados por planos de saúde, a “carta de denúncia” foi assinada pela Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (Abraça) e Vidas Negras com Deficiência Importam (VNDI) que, posteriormente, negaram ter conhecimento de parte do conteúdo.

Crianças com TEA correm o risco de voltar a ter limite no acesso a terapias

“O direito a ter uma intervenção baseada na ciência e com acesso livre para essas terapias é um direito conquistado à base de muita luta empreendida pelas famílias de pessoas com autismo”, afirma Flávia Marçal, pesquisadora sobre o TEA pela UFRA e mãe de criança com autismo. “Eu vivi isso. Quando o meu filho recebeu o diagnóstico de TEA, a Agência Nacional de Saúde permitia só 12 sessões de psicologia por ano. Uma sessão por mês”, acrescenta.

A ABA é uma das terapias com mais benefícios comprovados cientificamente para a comunidade autista. Em 2023, a Agência Nacional de Saúde retirou a limitação de carga horária dessa e de outras terapias oferecidas pelas operadoras de saúde a pessoas com TEA. Desde então, a quantidade de horas e o tipo de intervenção terapêutica passaram a ser definidos pelo médico que acompanha a criança. Nesse cenário, o lobby dos planos de saúde contra o pagamento dessas terapias, com argumentos negacionistas, ganhou força e passou a receber apoio inclusive de associações ligadas à causa autista. 

A ABA tem o objetivo de atuar sobre os comportamentos de crianças e adolescentes com TEA, ajudando-os a se sentirem mais confortáveis em situações cotidianas. As atividades são individualizadas, de acordo com as necessidades e metas de cada paciente e conduzidas por um atendente terapêutico.

Na carta, as instituições comparam a ABA a terapias intensivas aplicadas em manicômios, especialmente devido às longas jornadas a que a criança ficaria submetida. Elas argumentam que a grande quantidade de horas dedicadas à terapia impossibilitaria a criança de participar de outras atividades, como lazer, interação social espontânea e educação formal. Dessa forma, a criança não conseguiria ter uma vida equilibrada, o que segundo elas, geraria “estresse crônico, ansiedade e uma sensação constante da inadequação”.

A comparação, na opinião de especialistas, é descabida. “Quando você fala do regime manicomial, isso traz à mente pessoas que ficaram aprisionadas em um espaço e foram submetidas a violações severas de direitos humanos. Muitas delas recebendo inclusive torturas físicas. Comparar isso com uma criança fazendo terapia em diversos espaços, seja na escola, na residência ou em ambiente hospitalar, geralmente acompanhada dos pais, é muito leviano”, afirma Marçal.

Para a professora, essa comparação tem o objetivo de chocar a sociedade, o que é irresponsável e impede que o debate seja tratado com seriedade. “Dizer que pessoas com autismo estão sendo submetidas a um regime manicomial chama muito a atenção, mas está longe de corresponder com a realidade”, complementa.

“Terapia ABA não é a criança sentada em frente ao terapeuta o dia inteiro”, afirma especialista

Lucelmo Lacerda, doutor em Educação e pós-doutor em Psicologia, explica que o funcionamento da ABA é diferente do conceito de terapia entendido pelo senso comum. “Muitos autistas precisam do acompanhante terapêutico [executores da ABA] para realizar atividades normais, como ir à escola ou fazer as refeições. Não são 25 horas de uma criança sentada em frente ao terapeuta realizando atividades conduzidas, mas a vida natural do indivíduo”, esclarece.

Por exemplo, uma criança que tenha seletividade alimentar pode ter grandes progressos ao realizar as refeições na presença de um acompanhante terapêutico. Se cada refeição exige cerca de 1 hora de acompanhamento, isso já totalizaria 20 horas semanais de ABA, considerando café da manhã, almoço, lanche e jantar.

Na primeira parte do dossiê de 28 páginas, os argumentos usados são genéricos e carecem de citações de pesquisas e estudos que validem a posição apresentada. Entre os pedidos das associações estão a regulamentação das práticas terapêuticas para limitar a carga horária de terapias para pessoas autistas, a investigação de práticas que possuem excesso de horas terapia, capacitação de profissionais sobre os “riscos” associados ao ABA.

Flávia Marçal reforça que é importante criar uma regulamentação para o acompanhamento do tratamento da pessoa com autismo como um todo, e não apenas em relação à ABA. O objetivo seria facilitar a compreensão de como essa terapia ocorre na prática. Por outro lado, a limitação das horas de terapia seria, segundo ela, um retrocesso em relação a um direito conquistado com muito esforço.

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Lacerda explica que estudos consolidados demonstram resultados eficazes com uma carga horária de 25 horas a 40 horas semanais de ABA. No entanto, acrescenta que pouquíssimas famílias têm acesso a essa quantidade de horas. “Só famílias que têm condições de pagar ou que conseguiram uma decisão judicial conseguem fazer essa quantidade de horas de ABA, o que está cada vez mais raro”, explica. O custo de uma hora de ABA pode variar entre R$ 100 e R$ 300, o que geraria uma despesa mensal de aproximadamente de R$ 12 mil para as famílias.

Nesse cenário, Lacerda lamenta que associações de autistas que não seguem as evidências científicas, e defendem a limitação de horas de ABA, possuam mais acesso ao governo Lula. Além da entrega da carta, a Autistas Brasil foi uma das responsáveis pela organização do seminário onde o documento foi apresentado. Um dos diretores da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi) do MEC foi diretor da Abraça entre 2021 e 2024.

“Isso tudo só demonstra uma contradição do governo. Até pouco tempo, se diziam a favor da ciência, mas agora defendem o negacionismo, agem contra a ciência. É um cenário muito temerário, porque exclui grande parte da comunidade autista do diálogo”, afirma Lacerda.

Páginas que tratam sobre o tema, como Somos Colo de Mãe e a Associação Pintanto o Sete Azul, foram algumas das que se manifestaram contrariamente ao dossiê apresentado.

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“Não temos acesso privilegiado ao governo, de nenhuma forma. Felizmente, em razão de um trabalho bem-feito, temos conseguido galgar espaços antes nunca ocupados por pessoas autistas. Somos uma das poucas instituições de autodefensoria, ou seja, somos pessoas autistas falando sobre nosso direito”, rebate Guilherme Almeida, presidente da Autistas Brasil.

À Gazeta do Povo, Almeida reforça as comparações entre ABA e regime manicomial. Ele reconhece que profissionais de boa-fé que apoiam a prática se sintam ofendidos com a comparação. “Mas ressaltamos que a prisão não precisa ser predial, é pior quando a sentença é uma prisão mental”, completa.

Outro ponto destacado por Almeida é que o psicólogo Ole Ivar Lovaas, que desenvolveu a ABA, também foi responsável por terapias de conversão de sexualidade chamadas pejorativamente de “Cura Gay”. Segundo ele, “o objetivo dessas terapias é a conversão do comportamento considerado ‘anormal’, uma normatização da pessoa autista”.

Eliana Saliba, psicopedagoga, especialista em Neurociência Aplicada à Educação, que assessora as entidades contrárias ao ABA, compara as 40 horas de semanais de terapia a jornada de trabalho de um adulto. “A criança precisa brincar e ter tempo livre. Precisa explorar as coisas, é assim que o desenvolvimento acontece. Se a gente coloca dentro de uma caixinha para desenvolver comportamentos sociais adequados, como a criança será ela mesma?”, questiona.

Para ela, ao contrário de ajudar, o ABA seria uma espécie de adestramento. “Treinar habilidades e comportamentos é algo que se faz no adestramento. O problema é que, nesse processo, o sujeito pode ser esquecido e é preciso tomar cuidado para que ele não se torne um robozinho. O desenvolvimento do ser humano acontece por meio das relações. Como a ABA foca muito no desenvolvimento de habilidades, ela esquece o sujeito”, complementa Saliba.

Mesmo com esses argumentos, depois do evento, tanto o Autistas Brasil e a Abraça receberam diversas manifestações de repúdio nas redes sociais. Em resposta, ambas as instituições desativaram a função de comentários em seus perfis no Instagram. A Gazeta do Povo procurou Abraça, VNDI e o Ministério dos Direitos Humanos, mas não obteve retorno.

“Após a entrega da denúncia, a página da associação nas redes sociais foi atacada com diversos comentários agressivos e ameaçadores, que desvirtuavam totalmente do debate e começaram a levar os ânimos a níveis não desejáveis e que em nada contribuíam para o tema”, explica Almeida.

Já o Ministério dos Direitos Humanos (MDH) publicou um comunicado para pessoas autistas e familiares, informando o desejo de ampliar o diálogo com a comunidade. O MDH anunciou a realização de uma audiência pública e a criação de uma Câmara Técnica sobre Políticas Públicas e Deficiências Psicossociais.

Argumentos usados em “carta denúncia” são semelhantes aos de documentos de negativas feitas por planos de saúde

A segunda parte do texto, intitulada “Dossiê Técnico TEA”, apresenta alguns laudos com prescrições médicas de terapias. No material, há diversas indicações de mais de 40 horas semanais de terapia para crianças de idades e níveis de suporte diferentes. É justamente essa parte que a Abraça e a VNDI alegam desconhecer, apesar de suas assinaturas constarem no documento.

Um dos casos do dossiê é de um paciente de 5 anos que tem nível de suporte 1, também conhecido como autismo leve. A criança recebeu a prescrição de 49 horas de terapia por semana, o que significaria mais de 8 horas diárias de terapia por dia, de segunda a sábado. Nesse caso, 40 horas seriam dedicadas à ABA, e as outras 9 horas seriam para atividades sensoriais, fonoaudiologia, psicomotricidade, etc.

Na prática, a decisão da ANS ainda não garante o acesso ilimitado às sessões de terapia ABA. Algumas operadoras oferecem o serviço em ambulatórios que credenciam profissionais sem a devida qualificação. Outras formam juntas médicas para analisar as prescrições feitas pelo médico, resultando, na maioria dos casos, na negação do pedido. Diante deste cenário, muitas famílias recorrem à Justiça para que os filhos recebam o tratamento adequado.

Especialista acredita que, com diálogo, operadoras de saúde podem encontrar soluções sustentáveis

A Gazeta do Povo teve acesso a uma das negativas feitas por um plano de saúde. O pedido prescrevia 28 horas semanais de terapias a uma criança de 7 anos. Nela, os argumentos são bem semelhantes com os que estão no documento entregue à ministra dos Direitos Humanos.

“Uma prescrição de 28 horas semanais de terapias multiprofissionais pode trazer danos irreparáveis à criança em decorrência de privação de sono, abandono intelectual, sedentarismo, não formação de vínculo familiar e prejuízo no desenvolvimento psicossocial”, conta o documento.

“Não há dúvidas de que a quantidade de horas onera os planos de saúde. Mas eles têm a capacidade de buscar soluções de negócio sustentáveis. É preciso dialogar com a comunidade para encontrar a melhor alternativa, mas a postura deles tem sido de negar o acesso ou oferecer serviços de baixa qualidade”, conclui Lacerda.

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