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“As liberdades individuais não podem se sobrepor, muito menos se opor, às necessidades coletivas. A portaria assegura a negacionistas antivacina um direito que eles não podem ter. Negacionistas não pode ter espaço no ambiente universitário”. A professora Joana Célia dos Passos, diretora do Centro de Ciências da Educação, proferiu essas frases durante uma sessão extraordinária do Conselho Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
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Ela criticava a decisão da instituição de permitir que não vacinados contra Covid-19 frequentem a instituição, desde que apresentem exames de PCR a cada cinco dias. Nos bastidores da universidade, as mensagens foram entendidas como uma ameaça aos servidores e alunos que optaram por não se vacinar.
Em paralelo, na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), no Mato Grosso do Sul, 581 estudantes tiveram as matrículas trancadas porque não apresentaram comprovante de vacinação. “Faltam três disciplinas para terminar o curso, mas não vou ceder à pressão”, diz um estudante, que preferiu não se identificar.
“Meu pai é agricultor, terminar o curso de Engenharia Agrícola é importante para mim e para a minha família. Mas eu não abro mão do meu direito de optar por não tomar uma vacina que não é obrigatória”, diz ele. De fato, o Ministério da Saúde não considera a vacina contra Covid-19 obrigatória, e o Ministério da Educação determinou que as universidades públicas não poderiam barrar alunos e servidores por não apresentar comprovantes de imunização. Mas a decisão foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
“Terraplanismo”
O estudante conhece colegas que decidiram se vacinar, para não perder o curso. Um habeas corpus impetrado por um grupo de nove alunos da UFGD acabou sendo barrado pela Justiça Federal. O juiz Moisés Anderson da Silva alegou, em sua decisão: “Ora, vacina é a ciência aplicada no braço. Ainda que alguns vacinados, eventualmente, transmitam, outros, não. Não é porque algumas portas não contenham o fogo num incêndio, que iremos simplesmente arrancar todas as portas corta-fogo. Rememoremos, por fim, que Universidades são espaços dedicados ao estudo e à ciência, não ao terraplanismo”.
A universidade decidiu que docentes e demais servidores que não apresentarem comprovante de vacinação podem continuar trabalhando, mas exclusivamente em home office. Um servidor, que não se vacinou, afirma que a decisão de universidade a respeito dos funcionários também é autoritária. “A autonomia universitária não está acima da lei. Estou sendo impedido de entrar no meu ambiente de trabalho de forma autoritária. Essa é uma forma clara de coação”.
A UFGD informa que a decisão de exigir o comprovante vacinal foi tomada em reunião do Conselho de Ensino, Pesquisa, Extensão e Cultura, realizada no dia 26 de janeiro. O encontro teve mais de oito horas de duração e foi realizado por vídeo, de forma aberta (está disponível neste e neste link).
O vice-reitor, Arquimedes Gasparotto Junior, se manifestou contrário à proibição do acesso. “A vacina é fundamental. O problema é que a vacina não impede que você contraia a doença, e vacinados também transmitem. Você impedir que o aluno entre na sala no primeiro dia de aula, você não está oferecendo um escudo, não vai impedir o indivíduo de pegar a doença”, alegou. Mas, depois de um debate longo, a maioria dos conselheiros votou pela exigência do passaporte vacinal.
Outros incidentes deverão acontecer na medida em que as instituições públicas de ensino superior iniciem o semestre letivo. A Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), por exemplo, também decidiu que alunos e funcionários, efetivos ou terceirizados, devem apresentar comprovante de vacinação para acessar as instalações da instituição.
Em reação a isso, o grupo Docentes Pela Liberdade (DPL), que agrega professores universitários conservadores de todo o país, apresentou uma carta aberta à reitoria da UFRN. “Entendemos que o passaporte vacinal tem se mostrado inútil e contraproducente em diversos lugares no mundo”, afirmou o grupo no texto.
“Na Austrália, que adotou uma atitude austera de apresentação de passaportes e de isolamento de pessoas não-vacinadas, houve um recente surto de Covid-19, apesar de todas as normas e exigências. Aqui no Brasil, todos os cruzeiros marítimos foram cancelados por conta de surtos de Covid-19, mesmo com a exigência rigorosa de passaporte para o embarque”. Isso acontece porque, alegam os docentes, “a literatura científica demonstra que pessoas vacinadas podem contrair e transmitir o Sars-COV-2 e suas variantes da mesma maneira que aquelas não-vacinadas”, argumentou o DPL.
Medida segregadora
Exigir passaporte vacinal, nesse contexto, é “segregador e ineficiente”, defendem os especialistas consultados pela reportagem. “Ressaltamos que os indivíduos que se sentirem lesados pela obrigatoriedade vacinal são livres para judicializar o fato. Os senhores acham mesmo que, tendo sido ameaçados de corte salarial e de demissão, os servidores concursados não irão buscar seus direitos em ações diversas na Justiça? Acreditam mesmo que o MP trabalhista não irá considerar as alegações de quem simplesmente quer ter o direito de trabalhar? Acreditam mesmo que o setor jurídico da UFRN ficará ao seu dispor quando chegar a intimação judicial no endereço dos senhores? E a troco de quê? De nada, pois o passaporte vacinal não reduz transmissão”, afirmou o grupo de professores conservadores.
Apesar do argumento do DPL, a decisão do STF que autoriza que as universidades cobrem passaporte vacinal inviabiliza a contestação judicial. Os ministros Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Carmen Lúcia, Rosa Weber, Edson Fachin, Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Luiz Fux seguiram o voto do relator, Ricardo Lewandowski.
André Mendonça foi o único a divergir da decisão dos outros ministros. Por sua vez, Kassio Nunes Marques acompanhou o relator com ressalvas. Para ele, caso se prove que o passaporte sanitário não seja eficaz, seria necessário mudar a jurisprudência. “Nesse sentido, faço a seguinte indagação: na medida em que mesmo uma pessoa vacinada, de posse do certificado, pode contrair – e, portanto, transmitir – o vírus, qual será, ao longo do tempo, a real eficácia do certificado de vacinação?”, questionou o ministro.
“Reconheço que, se, de um lado, estas novas evidências não sejam ainda suficientes para demonstrar um consenso científico”, prosseguiu o ministro, “de outro, tenho que recomendam, ao menos, uma constante reanálise dessa complexa questão, sempre à luz de novas descobertas”. Ainda assim, neste momento, contestar a exigência do acesso a passaporte de vacinas em universidades públicas é inviável judicialmente.
Outro lado
A assessoria da UFSC mandou para a reportagem uma nota que se apoia na decisão do STF: “A Universidade Federal de Santa Catarina decidiu adotar a necessidade de comprovação de vacinação após a decisão do Supremo Tribunal Federal, que assegurou às Instituições Federais de Ensino a autonomia para estabelecer condições de segurança sanitária no âmbito de suas atividades. O motivo de instituir a medida é óbvio: proteção das pessoas, ouvida a Ciência”.
Procuradas, a UFRN e a professora Joana Célia dos Passos não se manifestaram.