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O avanço da agenda radical no campo da identidade de gênero tem preocupado muitos pais; boa parte deles teme, com razão, que os filhos sejam expostos a um conteúdo inadequado em sala de aula. Mas, a depender do precedente aberto por alguns países, há outras razões para se preocupar: o argumento de que a disforia de gênero (a percepção de que o sexo biológico difere da identidade de gênero) é inevitável e incorrigível tende a causar uma relativização dos direitos dos pais sobre filhos menores de idade.
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O raciocínio é esse: se a "identidade de gênero", na verdade, ideologia de gênero, é determinada por fatores sobre os quais a família não tem qualquer controle, e se a transição de gênero é a única forma de dar dignidade às pessoas com disforia de gênero, a consequência lógica é de que os pais não podem ter a palavra final no assunto - assim como os pais não têm o direito de impedir que um filho com alguma doença grave receba tratamento.
Na realidade, os números mostram uma realidade mais complexa: cerca de 80% dos casos precoces de disforia de gênero desaparecem naturalmente com o tempo, quando o jovem volta a se "identificar" com o sexo biológico. Além disso, a influência social parece ter uma influência significativa: especialistas têm identificado um aumento repentino no número de adolescentes que afirmam ter disforia de gênero, com indícios de uma espécie de epidemia alimentada pela pressão de grupo e pelas redes sociais.
Ainda assim, em alguns países os pais têm encontrado problemas ao tentar impedir que seus filhos menores de idade sejam submetidos a procedimentos de redesignação de gênero. Foi o que aconteceu com Robert Hoogland, no Canadá. Além de se opor ativamente à transição de gênero iniciada por sua filha de 15 anos, ele se recusa a chamá-la utilizando pronomes masculinos. Resultado: foi afastado do convívio com a garota (ele é divorciado da mãe da menina) e acabou preso.
Nos Estados Unidos, onde a agenda transgênero também avança rapidamente, alguns estados têm aberto brechas para reduzir os direitos dos pais. A situação é especialmente delicada quando a criança ou adolescente tem pai e mãe divorciados.
No Texas - estado mais conservador do que a média - um pai luta para impedir que seu filho, hoje com 9 anos, inicie a transição para o gênero oposto. Ele tem sofrido sucessivas derrotas na Justiça. Em agosto deste ano, Jeffrey Younger perdeu a custódia da criança para a esposa, uma pediatra que apoia a transição de gênero da criança.
Outro campo em que os pais têm perdido autonomia é o do sistema educacional. Cada vez mais, os governos têm adotado políticas que permitem a crianças e adolescentes adotarem uma "nova identidade" sem que os pais sejam informados. No estado americano de Nova Jersey, um manual elaborado pelo governo estadual prevê o seguinte: "Um distrito escolar deve aceitar a identidade de gênero declarada de um aluno; o consentimento dos pais não é necessário. Além disso, um aluno não precisa atender a nenhum critério de diagnóstico ou requisitos de tratamento para ter sua identidade de gênero reconhecida e respeitada pelo distrito, escola ou funcionários da escola."
As escolas públicas de Los Angeles, na Califórnia, também possuem um manual que orienta os profissionais a lidar com estudantes nessa condição. Um dos capítulos trata de pais que não “cooperam” com o processo. “Em alguns casos, a escola pode decidir não tocar no assunto se houver preocupação de que os pais ou responsáveis possam reagir negativamente”, diz o documento.
Conforme o debate avança, entretanto, outros estados americanos têm ido na direção contrária e criado barreiras à transição de gênero em crianças e adolescentes. O Arizona, por exemplo, aprovou em março uma lei que impede a adoção de terapias irreversíveis (envolvendo hormônios ou cirurgias) para menores de 18 anos.
Brasil
No Brasil, não há lei tratando da transição de gênero em menores de idade - ou em qualquer idade. O tema é disciplinado por resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM). O órgão define a questão como “o reconhecimento de cada pessoa sobre seu próprio gênero”. A norma mais recente, de 2020, define que a cirurgia só pode ser feita em pacientes com pelo menos 18 anos.
A hormonoterapia cruzada (a ingestão de hormônios masculinos por meninas ou vice-versa) é permitida a partir dos 16 anos. Nesse caso, o paciente deve ser acompanhado por uma equipe composta por pediatra, psiquiatra, endocrinologista, ginecologista, urologista e cirurgião plástico. Já o uso de bloqueadores de puberdade pode acontecer muito antes (8 anos de idade para garotas e 9 para garotos).
A norma do CFM estabelece que, em menores de idade, o tratamento hormonal seja feito com o consentimento “do responsável legal pelo adolescente”. Acontece que, por não ser uma lei, a regra do Conselho Federal de Medicina é frágil. Nada impede que o Supremo Tribunal Federal (STF) modifique as normas sob o argumento de que o Congresso Nacional se omitiu sobre o tema. Não seria a primeira vez.
Em 2018, por exemplo, a corte determinou que transexuais têm o direito de usar o nome social que preferirem e de serem oficialmente identificadas com o sexo que quiserem em seu registro civil. Não é necessário passar por tratamento ou cirurgia de redesignação sexual.
“Muitos dos debates ocorridos no exterior se transportam para o Brasil. Há, sim, a possibilidade de que situações semelhantes ocorram em nosso país”, alerta Edna Zilli, vice-presidente da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure). Ela afirma que a entidade tem atuado para proteger os direitos das famílias nesse campo.
A jurista diz ainda que o direito dos pais sobre a educação moral dos filhos está respaldada não só pelo Estatuto da Criança do Adolescente, mas por normas internacionais às quais o Brasil subscreve: “A Convenção americana de Direitos Humanos estabelece que os pais têm direito a que seus filhos recebam educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções. Ou seja: não é função do Estado intervir nesse âmbito”, diz ela.
Edna afirma, entretanto, que os opositores da agenda transgênero mais radical devem se mobilizar desde já, a começar pelos conselhos escolares, para impedir decisões - especialmente do Judiciário e do Executivo - que coloquem em risco a autonomia dos pais.