Especialistas explicam que casos de banalização do preconceito racial reforçam atenuação do comportamento racista| Foto: Pixabay
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O Brasil foi a última nação do continente americano a abolir a escravidão, com a extinção do trabalho escravo de pessoas negras em 1888. Mais de 120 anos depois, mais precisamente em 2011, uma lei instituiu o Dia da Consciência Negra, que é lembrada em 20 de novembro. Entretanto, o país ainda convive com aspectos bastante delicados relacionados ao preconceito racial – os registros de injúrias raciais no Brasil tiveram aumento de 23,4% no ano passado, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020. Nesse cenário, a banalização e a relativização do racismo surgem como agravantes que tornam ainda mais desafiadora a superação da discriminação no país.

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De forma simplificada, a banalização do preconceito racial ocorre quando situações que não configuram crimes de racismo ou injúria racial são apontadas como se houvesse, de fato, ocorrido um delito. Por outro lado, na relativização, aspectos relacionados à discriminação racial são menosprezados, dando a entender que quaisquer denúncias de crimes relacionados ao preconceito racial seriam mera “vitimização”.

De acordo com especialistas consultados pela Gazeta do Povo, os casos de banalização do preconceito racial – que ora ocorrem por interesses individuais, ora pelo desconhecimento do que configura um crime racial – prejudicam o combate ao racismo, já que reforçam comportamentos de atenuação da discriminação relativa à raça.

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“As várias situações em que há banalização do preconceito racial faz com que casos reais percam a seriedade. Esse tipo de conduta nos faz perder de vista os problemas reais relacionados ao racismo”, observa Paulo Cruz, professor de Filosofia e Sociologia e uma das principais vozes sobre questões raciais no Brasil.

Um caso recente em que o conceito de racismo foi erroneamente citado ocorreu no dia 6 de novembro, quando uma dupla de músicos criou um vídeo com um falso ataque racista, com o objetivo de ganhar mais seguidores para o lançamento de uma canção. No vídeo, o rapaz diz palavras racistas para uma mulher, que supostamente seria sua diarista. Após a repercussão, os músicos publicaram um vídeo e uma nota explicando que a situação realmente havia sido criada pelos dois para aumentar a quantidade de seguidores nas redes sociais.

Outro caso recente ocorreu, em 21 de outubro, em uma agência bancária, em Balneário Camboriú, em Santa Catarina. Uma mulher negra, com sua filha em um carrinho de bebê, insistiu em entrar na agência pela porta de deficientes em vez de usar a porta giratória, o que contraria os procedimentos de segurança obrigatórios das instituições bancárias. Após ser impedida, a mulher chamou a polícia para registrar o boletim de ocorrência e passou a acusar publicamente o banco de racismo em suas redes sociais.

Depois do ocorrido, o banco publicou uma nota em que reforça a importância do procedimento de segurança a todos os clientes para garantir a segurança de suas unidades.

Em outra ocasião, em janeiro deste ano, uma mulher acusou outro banco de racismo, após a gerente desconfiar que seu documento de identificação era falso e chamar a polícia. Ela acusou a instituição financeira de preconceito racial e afirmou que os funcionários da instituição estranharam a movimentação de valores altos em sua conta devido ao fato de ela ser negra. Na ocasião, o banco chegou a emitir uma nota pública se desculpando pelo corrido. Entretanto, ao sair da delegacia, a mulher havia rasgado e queimado o documento supostamente falso, o que levantou suspeitas por parte da polícia. Após os laudos periciais produzidos pelo Detran e pelo Instituto Félix Pacheco, a polícia concluiu que, de fato, o documento era falso.

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O advogado José Antônio Rosa, que é negro, aponta que esses episódios, além de fazer com que casos reais percam a seriedade, reforçam o comportamento relativizador do racismo e fortalecem um argumento que muitas vezes é utilizado por racistas de que “tudo é racismo” ou que “tudo é vitimização”.

“A questão racial no Brasil precisa ser tratada de forma criteriosa, racional e razoável. Quando as pessoas começam a enxergar racismo em tudo ou utilizam isso como forma de tirar vantagem, isso gera outros problemas que podem prejudicar a mudança de mentalidade na sociedade. E também fortalece a relativização de casos reais”, afirma.

Rosa afirma que, no Brasil, existem dúvidas por parte da sociedade quanto ao que configura os crimes de racismo e injúria racial e destaca a importância de separar situações concretas de crimes raciais de outras que não se configuram como tal. “Tem que ser muito criterioso nessa análise, porque acusar uma pessoa de ser racista é muito sério. Quando alguém quer ser racista, essa pessoa não deixa nenhuma dúvida quanto a isso, e normalmente ela já tem um histórico de preconceito racial em sua vida”, reforça o advogado.

Paulo Cruz, que também é negro, afirma que a multiplicação de denúncias falsas de crimes raciais tem a ver com a forma como a situação tem sido tratada no Brasil, com pessoas e partidos políticos buscando obter vantagem com a causa. “O racismo se tornou uma bandeira de espaço político, de carreira acadêmica, de espaço na mídia. Para muita gente, o racismo virou um negócio. Há uma agenda política e isso chegou na população comum. Como resultado, há a banalização e a relativização do preconceito racial”, afirma.

Diferença entre racismo e injúria racial

No Brasil, os conceitos jurídicos de injúria racial e racismo são diferentes. O crime de injúria racial está previsto no Código Penal (artigo 140, parágrafo 3º) e estabelece a pena de reclusão de um a três anos e multa.

Já o racismo está previsto na Lei 7.716/1989 e a pena pode chegar a cinco anos. De acordo com a Constituição Federal, é um crime inafiançável e imprescritível.

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A injúria racial ocorre quando alguém ofende outra pessoa com uso de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião, origem ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência. O delito diz respeito à ofensa individual, como usar um palavrão para se referir a um negro ou a um judeu, por exemplo. “O crime de injúria racial é referente ao racismo relacional, isto é, àquele que se faz presente nas relações interpessoais, afetando os indivíduos em escala individual”, explica Dennis Pacheco, cientista em humanidades e pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, na última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Já o crime de racismo incide não sobre um indivíduo, mas é caracterizado pela ofensa a uma coletividade indeterminada de indivíduos e entendido como discriminação contra a integralidade da população de uma raça, nacionalidade ou religião. Trata-se, portanto, de condutas discriminatórias a um grupo racial.

“O crime de racismo refere-se à coletividade difusa, fazendo referência a esforços de desumanização da coletividade racial em questão, bem como aqueles empreendidos no sentido de negar emprego, fazer diferenciação salarial, impedir acesso ou recusar-se a prestar serviço em função de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, orientação sexual, bem como fazer apologia a simbologias nazistas”, aponta o pesquisador.

Dados do Brasil

De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, divulgado em outubro, enquanto os registros de injúria racial em todo o Brasil tiveram alta de 23,4% entre 2018 (9.110 casos) e 2019 (11.467 casos), os registros de crime de racismo diminuíram 14% entre os dois anos, com 1.429 ocorrências registradas em 2018, e 1.265 em 2019.

Os estados que apresentam maior número de registros de casos de injúria racial foram: São Paulo (3.987 casos registrados em 2018 e 2019); Santa Catarina (2.880) e Rio Grande do Norte (2.860). Entretanto, ao considerar a taxa de registros por 100 mil habitantes, que traz números proporcionais ao número de habitantes de cada unidade federativa, Santa Catarina e Rio Grande do Norte lideram o ranking.

Por outro lado, nos números referentes ao crime de racismo, em números totais os estados Maranhão (469 casos nos dois anos), Mato Grosso (446) e Santa Catarina (413) surgem como detentores dos maiores números de registros. Quanto às taxas por 100 mil habitantes, Mato Grosso lidera a lista, seguido por Manaus e Amapá.

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Apesar dos números apresentados, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) – entidade responsável pelo estudo –, ressalta que não é possível ter uma noção exata do quadro referente aos crimes relacionados a preconceito racial no Brasil, já que o levantamento é feito a partir de informações repassadas pelos governos estaduais e nem todos os estados enviaram dados referentes aos registros no período pesquisado.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]