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Dirceu* mora em um cômodo de cortiço improvisado no barracão no qual está “preso” | Hugo Harada/Gazeta do Povo
Dirceu* mora em um cômodo de cortiço improvisado no barracão no qual está “preso”| Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo

Os materiais recicláveis se amontoam, abarrotando um dos barracões que servem de depósito, em uma viela da Vila das Torres, em Curitiba. À beira das pilhas de papelão, sucata e vidro, se espremem oito cômodos de madeira que compõem uma espécie de cortiço. Em cada quarto, vive uma família de catadores – todos relegados a uma condição análoga à escravidão. São vítimas de um esquema no qual, em troca do empréstimo do carrinho e do aluguel do quarto, se obrigam a vender ao dono do barracão tudo o que catam, mas por preços bem menores do praticado no mercado. Encontram-se presos a essa dinâmica de exploração.

Para MPT, esquema configura trabalho escravo e persiste há décadas

O Ministério Público do Trabalho (MPT) classifica como trabalho análogo à escravidão a condição dos catadores mostrados pela Gazeta do Povo. Há três décadas o órgão diagnosticou este tipo exploração, mas Curitiba segue incapaz de erradicar a prática.

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Não se trata de um caso isolado. A Gazeta do Povo teve acesso a três depósitos de materiais recicláveis. Todos mantinham catadores atrelados por meio do aluguel de quartos diminutos – chamados “peças” – e do fornecimento de carrinhos. A partir de entrevistas com catadores, a reportagem identificou mais de uma dezena de barracões que funcionam a partir dos “escravos”, em diversos bairros.

Enquanto o setor de reciclagem movimenta R$ 12 bilhões por ano no Brasil, esses trabalhadores vivem na miséria. Em média, recolhem 300 quilos de recicláveis por dia, pelos quais recebem entre R$ 30 e R$ 60 (dependendo do tipo do material). Registro em carteira e outros direitos básicos não passam de sonho. Por sua vez, os barracões chegam a vender o volume trazido pelos catadores pelo dobro do preço. Funcionam como atravessadores, que se mantêm a partir dessa modalidade de exploração. Permanecem na clandestinidade, sem registros ambientais ou vistorias.

“Presos”

A filha de Anderson* e Aline*, ambos com 21 anos, acabou de completar um ano de idade, mas seu mundo se restringe aos muros do depósito onde a família vive. Todos os dias, o rapaz percorre mais de 20 quilômetros para “puxar papelão”. A esposa fica cuidando da criança na “peça” que ocupam, alugada por R$ 60 por semana. Trata-se de um cômodo que não chega a dez metros quadrados, onde um pedaço de espuma suja serve de colchão.

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“Eu me sinto como um cavalo, mas ‘tô ‘amarrado’ por causa do aluguel. Eu ‘tô preso ao lixo (...) Eu queria outro lugar, [em] que pudesse puxar papel e não sofresse tanto”, diz o rapaz, que de segunda a sábado sai para fazer a coleta, faça chuva, faça sol. “Se não for pra rua, o homem [dono do barracão] cobra, fica bravo, faz pressão. E tem que voltar sempre com o carrinho cheio. Não tem conversa”, acrescenta.

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Há um ano e meio, José Marcos*, de 53 anos, está vinculado a um mesmo barracão. Vende o papelão que coleta a R$ 0,17 o quilo, que é repassado pelo “chefe” por R$ 0,30 a uma empresa de reciclagem. Na avaliação dele, a falta do instrumento de trabalho e de um local onde possa separar os materiais o impede de se libertar do esquema. “Eu fico preso ao dono [do barracão]. Se não tivesse, poderia escolher quem tivesse melhor preço. Infelizmente, eu ‘tô sujeito a isso”, lamenta.

*Os nomes foram substituídos para proteger os trabalhadores

  • Barracão mantém um cortiço improvisado (à direita da imagem), onde catadores moram
  • Carrinhos são cedidos aos catadores que, em troca, são obrigados a vender o material ao dono do galpão
  • Quartos improvisados ficam próximo ao material reciclável acumulado, facilitando a proliferação de ratos
  • Carrinhos em frente a barracão indicam a grande movimentação no local
  • Carrinheiro acendo fogo no chão para cozinhar sua refeição, no quarto em que ocupa
  • Banheiro e tanque são usados coletivamente por todos os moradores do cortiço: limbo e cheiro forte
  • Casal vive com a filha de um ano em quarto de oito metros quadrados, em galpão de reciclagem
  • Reportagem visitou três galpões que mantêm catadores e identificou outra dezena de galpões
  • Catadores chegam a vender os materiais aos donos de barracão pela metade do valor praticado em mercado
  • Catador separa produtos recicláveis ao lado do quarto que ocupa
  • Quarto e material, lado a lado
  • Catador anda, em média, 20 quilômetros por dia, recolhendo materiais como papelão e plástico
  • Trabalhadores chegam a catar 400 quilos de recicláveis por dia
  • Adolescente trabalha na separação de material, em galpão de recicláveis
  • Dirceu* ganha, em média, 40 reais por dia, a partir da venda de produtos recicláveis
  • Material já separado e prensado, pronto para a venda a usinas de reciclagem
 | Hugo Harada/Gazeta do Povo

Famílias dividem depósitos com lixo, bichos e doenças

Antes de dormir, Roberto* fecha bem a porta do cômodo que divide com a esposa, em um galpão de recicláveis, na periferia de Curitiba. Tenta vedar as frestas com panos e pedaços de madeira. Espera impedir, com isso, que os ratos entrem na “peça”. A preocupação tem justificativa: há dois meses, ele passou 22 dias hospitalizado por ter contraído leptospirose. Com a internação, as dívidas apertaram. “Eu tive que pedir alta antes, porque a dona do barracão ‘tava apertando a minha mulher. O aluguel atrasou. Aí foi dívida”, disse.

A preocupação com os ratos e insetos que proliferam nos barracões é recorrente. Em geral, os materiais permanecem empilhados – em alguns casos, ao relento – muito próximo dos cortiços. Cães abandonados vasculham os depósitos em busca de alimento quase todos os dias. Há ainda o temor de contrair doenças transmitidas pelo Aedes aegypti, como a dengue e a zika. “Rato tem por todo lado. À noite dá até medo de sair da ‘peça’. A sorte é que a dengue ainda não chegou”, diz Dirceu*, de 53 anos.

Acomodações

Os galpões visitados pela reportagem tinham apenas um banheiro coletivo, que se restringia a um chuveiro e um vaso sanitário. Sem azulejos, as paredes estavam impregnadas de bolor e um cheiro forte pesava sobre o ambiente. Também só há um tanque, onde os catadores têm que se revezar, caso queiram lavar roupa.

Em alguns cômodos, um fogão divide espaço com a cama ou outros pequenos móveis. Outros moradores, como Dirceu*, cozinham em uma fogueira acesa no chão. “A gente come o que tem. Graças a Deus, tem muita gente que olha pela gente, que dá uma sopa, um prato de comida. Senão ia ser pior”, disse.

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