Opinião
Marleth Silva, editora executiva da Gazeta do Povo
Sociedade brasileira trata assunto de forma irrealista
Leia a Bíblia, leia Shakespeare, leia a mitologia, leia contos de fadas e você encontrará relatos de abandono de recém-nascidos. Leia os jornais e toda semana você também encontrará um registro de um bebezinho deixado ao relento. O abandono de crianças é um ato assustador: põe em risco a vida de uma pessoa indefesa, macula a maternidade e tem consequências fortes sobre a vida daquele que é abandonado. Mas o abandono de crianças sempre aconteceu e continua acontecendo. A sociedade brasileira, porém, cheia de boas intenções, trata o assunto de forma irrealista. Temos uma legislação correta e uma estrutura no Judiciário encarregada de, ao ter contato com uma família que quer abrir mão de seu filho, convencê-la a refletir e não agir de forma tão extrema.
O problema é que esse quadro não leva em conta a realidade da mãe biológica que chega ao ponto de deixar seu bebê em uma rua. Por alguma razão, ela está desesperada. Por alguma razão, não vê outra saída. Não tem ninguém com ela se tivesse, poderia ao menos se inibir diante da possibilidade de ser cobrada pelo sumiço da criança.
No Brasil-Colônia, adotou-se a Roda dos Expostos, ou Roda dos Enjeitados, uma invenção atribuída ao Papa Inocêncio II. Nos conventos, hospitais e igrejas, uma abertura na parede era coberta por uma roda, onde os bebês eram deixados. Levava-se em conta que a vergonha e o medo da recriminação impediriam as mulheres de entregarem os bebês no colo de alguém, mas não as impediriam de deixá-los em uma rua escura. Hoje, toda a estrutura é montada para inibir a doação, para dificultá-la. A intenção é correta, mas o resultado tem sido um desastre.
O abandono de um bebê em Curitiba na noite da última quinta-feira, a mais fria do ano, mostra que o Brasil ainda não conseguiu resolver o drama da infância vulnerável, apesar de a legislação prever que a mãe pode deixar o filho para a adoção no Judiciário sem punição. A menina, que tinha cerca de 3 dias, foi encontrada por moradores do bairro Uberaba, enrolada apenas em um cobertor, na noite em que a temperatura chegou a 7ºC. Depois da chegada da Polícia Militar e do Siate, foi encaminhada ao Hospital do Trabalhador para cuidados médicos. O caso se soma a outros que quase semanalmente estão no noticiário nacional, como o abandono de uma menina em uma caçamba de lixo em São Paulo, no final de abril. Apesar da recorrência, não há hoje no país uma política nacional que estimule as mães a deixarem os bebês em locais apropriados. A legislação prevê que qualquer gestante que queira entregar o filho para adoção deve procurar a vara da infância do município, sem qualquer responsabilização legal. Mas isso não ocorre, muitas vezes, por falta de conhecimento e apoio.
Durante anos no Brasil a roda dos "enjeitados" ou "expostos" foi o destino dos bebês abandonados no país, que eram cuidados então por religiosos. Hoje, apesar de a lei prever que a gestante deve receber assistência caso não queira o filho, não há campanhas de esclarecimento e nem suporte. O resultado é que mulheres pobres, sem apoio da família, dependentes químicas ou em depressão acabam abandonando seus filhos.
A procura pelo Judiciário quase nunca é o caminho, seja por medo da figura do juiz, falta de informação ou receio de estigma por não seguir o "fluxo natural" da vida. O destino da criança quase sempre é um abrigo, onde ela aguardará uma nova família, espera que pode levar meses. Depois de ganhar alta do hospital, onde ficou em observação, esse será o destino da menina abandonada em Curitiba.
O promotor carioca Sávio Bittencourt conta que no Rio de Janeiro uma campanha começou a tentar mudar o quadro de desinformação das mães. Com o slogan "Não jogue seu filho no lixo, dar em adoção é um ato de amor", o Judiciário do estado tenta mudar esse quadro. "Certamente hoje há um problema de comunicação", avalia. Ele critica o fato de algumas vezes os magistrados quererem encontrar alguém da família para confirmar a adoção. "Há um tipo de coerção social para que a pessoa tenha que amar o filho obrigatoriamente."
A promotora Luciana Linero, da Promotoria da Criança e do Adolescente do Ministério Público do Paraná, avalia que a legislação não supre todas as mazelas. Apesar da possibilidade de entrega do filho para adoção, outras questões sociais não são plenamente contempladas: não há, por exemplo, um sistema eficaz de proteção para mulheres e pobreza.
Presidente da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (Angaad), Maria Bárbara Toledo argumenta que o estado também deveria investir em ações de planejamento familiar para a população mais pobre.
Adoção aberta
Em países como Estados Unidos é possível realizar a chamada adoção aberta, em que a gestante pode "escolher" os pais adotivos e até ter contato com o filho. No Brasil isso é proibido. Para quem defende a opção, essa possibilidade poderia ajudar a diminuir o número de abandonados. Já os críticos argumentam que isso geraria um "comércio" de meninos e meninas. "O objetivo da adoção é achar uma família para a criança e não o contrário", diz Luciana. A promotora pondera que nos casos onde há o procedimento legal da adoção, com inclusão dos pretendentes no cadastro nacional de adoção e avaliação psicológica e social, o insucesso é mínimo.
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