Sigilo
Centros foram criados às sombras da sociedade
Em 1965, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), afundado em denúncias de inoperância e corrupção, começou a negociar um convênio com o governo de Minas Gerais, através do qual o Executivo estadual assumiria a incumbência de garantir a ordem e a assistência às aldeias locais. O acordo foi ratificado posteriormente pela Fundação Nacional do Índio (Funai), em 1967. Assim nasceu Reformatório Agrícola Indígena Krenak, um "centro de recuperação" de índios mantido pela ditadura militar no município de Resplendor (MG).
Sem alarde, o reformatório por vezes também chamado de Centro de Reeducação Indígena Krenak começou a funcionar em 1969 em uma área rural dentro do Posto Indígena Guido Marlière. As atividades locais eram comandadas por oficiais da Polícia Militar, que, após o estabelecimento do convênio, assumiram postos-chave na administração local da Funai.
Nos anos seguintes, foram enviados para lá mais de cem índios, pertencentes a dezenas de comunidades. Um mosaico de etnias que incluía desde habitantes do extremo Norte do país, como os índios ashaninka e urubu-kaapor, a povos típicos do Sul e do Sudeste, como os guaranis e os kaingangs.
Até hoje, muito pouco se divulgou sobre o que de fato acontecia no local. "O reformatório não teve sua criação publicada em jornais ou veiculada em uma portaria", escreve o pesquisador José Gabriel Silveira Corrêa.
Confinados
A rotina do trabalho escravo
A sede do reformatório possuía duas edificações. Numa delas ficava a administração, o almoxarifado e o alojamento dos guardas. Já a outra era o reformatório propriamente dito. Dispunha de cozinha e refeitório, além de duas celas individuais, dois confinamentos coletivos e dois cubículos para detenção esses últimos destinados a encarcerar quem cometesse faltas graves no dia a dia correcional.
Pela manhã, após o desjejum, os "confinados" jargão utilizado para designar os índios eram levados para trabalhos rurais, que prosseguiam também depois do almoço. No fim do dia, numa rotina tipicamente prisional, eram postos para dormir após o banho e o jantar coletivo.
"Íamos até um brejo, com água até o joelho, plantar arroz", revela Diógenes Ferreira dos Santos, índio pataxó levado ao Krenak em 1969. "Botavam a gente para arrancar mato, no meio das cobras, e os guardas ficavam em roda vigiando, todos armados", complementa João Batista de Oliveira, conhecido como João Bugre, da etnia Krenak.
Diversos documentos produzidos pelos policiais que acompanhavam, mês a mês, revelam o comportamento dos presos. Uma dessas fichas, de um índio da etnia Karajá, descrito como lerdo e preguiçoso, deixa claro a obrigatoriedade dos trabalhos braçais. "É um elemento fraco, parecendo até mesmo ser um retardado. Se pudesse, não faria nenhum serviço". Outras formas de tratamento degradante, como, por exemplo, escassez no fornecimento de comida, calçados e vestimentas, também estão explicitadas nesses ofícios.
Crime e castigo
Homicídios, roubos e o consumo de álcool nas áreas tribais na época fortemente repreendido pela Funai são alguns dos motivos alegados para a transferência de índios ao Krenak. Além disso, os documentos do órgão também citam brigas internas, uso de drogas, prostituição, conflitos com os chefes de posto, indivíduos penalizados pelo "vício de pederastia" e atos descritos, como vadiagem. Segundo os registros oficiais, alguns índios permaneceram por mais de três anos e havia indivíduos sobre os quais se desconhecia até o suposto delito.
Durante os anos de chumbo, após o golpe de 1964, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) órgão antecessor da Fundação Nacional do Índio (Funai) , manteve silenciosamente em Minas Gerais dois centros para a detenção de índios considerados "infratores". Para lá foram levados mais de cem indivíduos de dezenas de etnias, oriundas de ao menos 11 estados das cinco regiões do país. O Reformatório Krenak, em Resplendor, e a Fazenda Guarani, em Carmésia, eram geridos e vigiados por policiais militares. Sobre eles recaem diversas denúncias de violações de direitos humanos.
Os "campos de concentração" étnicos em Minas Gerais representaram uma radicalização de práticas repressivas que já existiam na época do antigo SPI órgão federal, criado em 1910, substituído pela Funai em 1967. Em diversas aldeias, os servidores do SPI, muitos deles de origem militar, implantaram castigos cruéis e cadeias desumanas para prender índios.
Os anos desde o fim da ditadura pouco contribuíram para tirar da obscuridade a existência dos presídios indígenas. Um silêncio que incomoda novas lideranças como Douglas Krenak, 30 anos, ex-coordenador do Conselho dos Povos Indígenas de Minas Gerais (Copimg). "Em 2009, recebi um convite para participar das comemorações, em Belo Horizonte, dos 30 anos da Anistia no Brasil. Havia toda uma discussão sobre a indenização dos que sofreram com a ditadura, mas a questão indígena não foi nem sequer lembrada", reclama.
Douglas é mais um entre os que têm histórias familiares de violência física e cultural sofridas nesse período. "Meu avô foi preso no reformatório Krenak. Chegou a ser arrastado com o cavalo de um militar, amarrado pelos pés", relata.
Para a pedagoga Geralda Soares, ex-integrante do Conselho Indigenista Missionário em Minas Gerais, é fundamental reparar a dívida com os indígenas vítimas de violências no período que, acredita ela, não difere das perseguições a outros grupos que sofreram nos porões da ditadura. "Muitos desses índios são presos políticos. Na verdade, eles estavam em uma luta justa, lutando pela terra", defende. Não existe, no Brasil, nenhum indivíduo ou comunidade indígena indenizado pelos crimes cometidos pelo Estado nessas áreas de confinamento.
"Se cabe para os outros, porque não cabe para os índios?", questiona Maria Hilda Baqueiro Paraíso, professora associada da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A Comissão Nacional da Verdade, instalada pelo governo federal em maio de 2012, definiu os crimes contra camponeses e indígenas como um dos seus 13 eixos de trabalho. Procurada para dar mais detalhes sobre as apurações que estão sendo realizadas, a Comissão não se pronunciou.
Comunicação reprimida, castigo e desaparecimento
Se comunicar em língua indígena era terminantemente proibido. "Você era repreendido, pois os guardas achavam que a gente estava falando deles", lembra o ex-preso João Bugre. Situação ainda mais difícil para aqueles que não sabiam português. "Tinha que aprender na marra. Ou falava, ou apanhava". Bugre foi preso em 1970. O registro do crime, nos documentos sobre o caso, mostra que ele transportou cachaça para dentro da aldeia e se embriagou com outros índios.
Desaparecidos
Algumas mulheres krenaks, que chegaram a ser recrutadas pelos policiais da Funai para trabalhar no reformatório, também são testemunhas das violências desse período. "Quem fugia da cadeia sofria na mão deles", afirma Maria Sônia Krenak, que foi cozinheira no local. Além dos espancamentos, há relatos sobre perseguições acompanhadas de tiros, e de presos que nunca mais foram vistos. "Saiu um bocado ali que não voltou mais", revela.
*Esta reportagem foi realizada por meio do Concurso de Microbolsas da Agência Pública.
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