Em 2006, o Brasil se comprometeu junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT) a erradicar até o fim deste ano as “piores formas de trabalho infantil” — uma lista de 89 atividades que engloba, por exemplo, o trabalho doméstico, a exploração sexual e o comércio ambulante. O país, mundialmente conhecido pelo enfrentamento desse problema, também se propôs a eliminar todas as formas de trabalho infantil até 2020. A primeira das metas, no entanto, não será cumprida até dezembro. A segunda exigirá uma mobilização nacional de grande porte para se tornar realidade, uma vez que ainda há no país 3,2 milhões de jovens com idades entre 5 e 17 anos e que já estão na ativa.
Nos últimos 12 anos, o avanço foi grande: o número de crianças e jovens trabalhando caiu 58,1%, segundo o governo. Mas, se o ritmo observado nos últimos dois anos for mantido, a eliminação do trabalho infantil só ocorrerá em 2025.
Ainda no universo infantil, outra meta assumida pelo governo também terá que ser adiada. Em 2010, quando fazia sua primeira campanha eleitoral à Presidência, Dilma Rousseff prometeu entregar 6 mil creches e pré-escolas até o fim de 2014. Elas atenderiam a crianças com idades entre 0 e 5 anos, em pouco mais de quatro mil municípios. Dados do Ministério da Educação revelam, no entanto, que apenas um terço dessas creches foi inaugurada. Grande parte sequer foi licitada.
Nas últimas semanas, O GLOBO percorreu municípios de diversos estados onde flagrou casos de exploração do trabalho infantil. Também encontrou terrenos destinados à construção das creches de Dilma ainda desocupados, quando já deveriam ter as obras concluídas, como em Belford Roxo e Nova Iguaçu, cidades da Baixada Fluminense, e em Porto Alegre, capital gaúcha.
Os ministérios do Trabalho, do Desenvolvimento Social e da Educação reconhecem que o país não cumpriu nem a meta da erradicação das piores formas de trabalho infantil nem a da construção de creches e pré-escolas. Os prazos foram adiados, e as promessas de maior mobilização vieram à tona.
Para especialistas, o trabalho infantil tem raízes em questões culturais. No país, é comum ouvir que é melhor ter meninos empregados do que desocupados ou no crime. A prática contraria a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente, mas nunca levou nenhum brasileiro à prisão, pelo simples fato de que, no país, explorar a mão de obra infantil não é crime, ao contrário do que supõe o senso comum.
Dedos sujos de terra, pólvora e repletos de calos
No contato com a pele, herbicidas podem provocar bolhas e descamações. Com as unhas, amolecimento e descoloração. Quando ingeridas, essas substâncias químicas que exterminam ervas daninhas em lavouras provocam queimação na boca e na faringe e podem até perfurar o esôfago. Para João (nome fictício), no entanto, um gole de herbicida era a única rota de fuga do inferno em que vivia.
Diariamente, às 11h, quando o atravessador de verduras aparecia para recolher a produção de couve, João e seus três irmãos — todos menores de idade — já estavam de pé há seis horas. Já tinham sido enxotados da cama por um pai aos berros, engolido uma xícara de café feito pela mãe e recebido ordens para capinar, semear, colher e pulverizar. A plantação de couve mantinha a família. Desde pequenos, as tardes dos irmãos tinham roteiro único: alimentar cavalos, porcos e galinhas. Qualquer deslize, flagrado pelo pai da varanda, resultava em surras com cana-de-açúcar ou mangueiras de jardim.
Pobre, a família não era. No terreno de cerca de cinco hectares, além dos milhares de pés de couve, havia carros, motos e um trator. Mas, até o início deste ano, João e seus irmãos nunca haviam provado sorvete ou biscoito recheado. Jamais tinham visto as luzes da cidade à noite. Viviam com pouco.
A tentativa de suicídio do menino levou sua mãe a procurar ajuda, e o Ministério Público, a descobrir mais um caso de exploração do trabalho infantil. João e sua família foram resgatados há 50 dias e aceitaram contar suas histórias ao GLOBO com a condição de que não fossem revelados nomes, idades e município em que estão abrigados. O pai, que foi denunciado por diversos crimes e tem mandado de prisão, está foragido. Se for preso, não pagará por ter empregado a mão de obra de suas crianças. A exploração do trabalho infantil não existe no Código Penal brasileiro .
Risco permanente de queimaduras
Em Itaguaí, cidade da Região Metropolitana do Rio, as mãos pequenas de menores são treinadas para serem ágeis: colocar rapidamente uma mistura de areia, pólvora e prata sobre pequenos pedaços de papel fino e dobrar, sob risco de explosão. É a produção artesanal de estalinhos, uma atividade perigosa que emprega centenas de famílias e passa por gerações. Para cumprir metas impostas pelas fábricas de fogos, que compram a produção, é comum menores ajudarem os pais na confecção. Fabiana Ferreira, 33 anos, faz estalinhos desde os 10. Abandonada pela mãe, ela conta que ajudava o pai com o dinheiro que ganhava. Hoje, continua a produzir estalinhos e ensinou o ofício aos filhos de 12 e 16 anos. Num acidente há um ano, Fabiana teve as mãos queimadas numa explosão.
Em Teresópolis, na Região Serrana, uma cena se repete nas manhãs de sábado e domingo. Por volta das 7h30m, três adolescentes maltrapilhos reúnem cavalos e charretes e esperam sobre um sofá velho os primeiros clientes da Feirarte, popularmente conhecida como a Feirinha do Alto. Por lá ficam até o pôr do sol, convencendo pais e crianças de classe média a pagar por um passeio de 20 minutos com os animais. O Ministério Público investiga o caso e, em relatórios preliminares, já registrou que os três menores trabalham para um servidor não identificado da prefeitura e recebem R$ 5 por dia. Deste valor, o empregador desconta o pão e a mortadela que os mantêm de pé. A jornada é de dez horas.
— Sabemos que eles também trabalham com cavalos de segunda a sexta-feira porque o dono dos animais não têm pasto e paga para que os meninos busquem alimento e água para os cavalos — diz a assistente social do MP Alessandra Corguinha.
— Por não usarem botas, seus pés estão sempre machucados. Devido às rédeas e ao peso das charretes, as mãos vivem cheias de calos. Os três são magros e estão fora da escola — acrescenta a psicóloga do MP Susana Andrade. — Quando falamos com as famílias, todas de baixa renda, um mantra se repete: “é melhor trabalhar do que cair no tráfico”.
Em 2006, quando alguns dos menores desta reportagem nem haviam nascido, o Brasil sediou a XVI Reunião Regional Americana da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em Brasília. No encontro, comprometeu-se a “eliminar as piores formas de trabalho infantil até 2015 e a erradicar a totalidade do trabalho infantil até 2020”. Entre essas “piores formas” estão a pulverização de lavouras, o trabalho em estábulos e a fabricação de fogos.
Nos últimos 12 anos, o país teve claros avanços na luta contra o trabalho infantil. O número de jovens com idades entre 5 e 17 anos que trabalham caiu 58,1%. Mesmo assim, a primeira das metas assumidas junto à OIT — de eliminar as “piores formas” — não será cumprida até o fim deste ano. A segunda — que prevê a eliminação total em 2020 — exigirá uma maior mobilização nacional.
Metas não cumpridas pelo Governo
A Constituição veda o trabalho antes dos 14 anos. A partir daí, o adolescente só pode ser empregado na condição de aprendiz, atuando em locais que não sejam prejudiciais à sua formação, desenvolvimento físico, psíquico, moral e social. Também deve cumprir horário que lhe permita ir à escola.
Em 2011, quando a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios (Pnad) indicou que havia 3,7 milhões de menores trabalhando, a presidente Dilma Rousseff e o então ministro do Trabalho, Carlos Lupi, lançaram o Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador. No texto, fixaram objetivos emergenciais que ajudariam o país a enfrentar a questão e a cumprir o acordado com a OIT. Eliminar o trabalho infantil entre os 5 e os 9 anos era o primeiro deles. “Reduzir a menos de 3% a ocorrência na faixa etária de 10 a 13 anos”, o segundo.
De acordo com a última Pnad (2013), as duas metas não foram e não serão cumpridas. Cerca de 60 mil crianças de 5 a 9 anos seguem na ativa, e o índice de jovens entre os 10 e os 14 anos que trabalham soma 5%. Um análise da série histórica indica que a primeira meta traçada por Dilma e Lupi só deverá ser alcançada em 2017, e a segunda, só em 2023. Sem as duas conquistas, o compromisso do Brasil com a OIT fica comprometido.
— A meta colocada em 2006 foi audaciosa, mas é assim que tem que ser — diz o secretário executivo e ministro interino do Trabalho, Francisco Ibiapina. — Só com grandes metas conseguimos grandes mobilizações. Então, apesar de os dados indicarem que não chegaremos lá, apontam que avançamos.
Ibiapina destaca que, nos últimos 13 meses, o ministério fez 9.838 fiscalizações e que, entre maio de 2014 e de 2015, resgatou 6.491 menores.
— Temos cerca de 2.600 auditores fiscais. O ideal seria 5 mil. O Ministério do Planejamento se comprometeu a, num prazo de três anos, repor mil vagas. Isso será um avanço — afirma Ibiapina. — No que diz respeito às operações, vamos cruzar os bancos de dados públicos e traçar ações mais focadas, onde o problema do trabalho infantil persiste.
O Ministério do Desenvolvimento Social atua em conjunto com o Trabalho. Desde abril de 2014, implanta uma “versão redesenhada” de seu Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, o Peti.
— Identificamos que 80% dos casos de trabalho infantil ocorrem em 1.913 municípios — conta Telma Maranho, diretora de Proteção Especial da Secretaria Nacional de Assistência Social. — Fizemos encontros em 957 dessas cidades e, nelas, estamos implantando o Peti mais focado. Estão no grupo as capitais e regiões metropolitanas, além de 600 cidades com muita mão de obra infantil na agricultura.
Para Telma, há dois desafios até 2020: o fim do trabalho doméstico infantil e daquele em que o menor age por vontade própria, para se manter.
— Sabemos que 8% das crianças trabalham no serviço doméstico, mas não podemos entrar nas casas. Vamos trabalhar com as famílias. Já o menor que se emprega para poder ter um tênis, por exemplo, tem que ser alvo de políticas públicas.
Maria Cláudia Falcão, que coordena o programa de trabalho infantil da OIT no Brasil, ainda aponta duas frentes de ação: a criação de instrumentos capazes de realmente medir as piores formas de trabalho infantil — que costumam ser invisíveis — e um estímulo aos programas de aprendizes.
— Empresa com mais de sete funcionários é obrigada a cumprir uma cota de jovens aprendizes: 5% do total de funcionários sem curso superior. Segundo o Ministério do Trabalho, em 2013, seriam 1,2 milhão de vagas se todas as empresas cumprissem a exigência, mas havia apenas 335 mil aprendizes.
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