| Foto: Sossella

Documento e número do chassi esquentam Scania em São Paulo

Cinco meses após a morte de Fábio Rodrigues da Silva, a viúva finalmente começou a compreender a causa da aflição às vésperas do suicídio. Parte da explicação chegou numa intimação da Polícia Civil de São Paulo, dia 4 de maio de 2007. Ela, que não quer se identificar, só então soube do caminhão Scania registrado no nome dele. O problema é que Fábio era só um laranja. Pior: teria de dar explicações sobre a origem do veículo apreendido com chassi adulterado. Era a segunda intimação, e possivelmente ele já estava sendo pressionado a não abrir a boca.

O caso começa com a transferência de um caminhão de Curitiba para Fábio, no dia 4 de outubro de 2005. A placa JNW-9913 e o número do chassi são exatamente os mesmos do caminhão de Sônia Regina Fachin, retirado com documento falso de dentro da delegacia de Paranaguá quatro meses antes. O problema estourou em 17 de março de 2006, quando o Departamento de Investigações sobre Crime Organizado (Deic) comprovou a adulteração no chassi do caminhão apreendido em Mogi das Cruzes uma semana antes.

O mecânico Amilton Alves da Silva disse ter pago R$ 120 mil em dinheiro pelo cavalo e pela carreta a um homem chamado Marcos, que se dizia motorista de Fábio. A transação ocorreu no dia 10 de março de 2006 e, segundo Amilton, não havia restrição no Detran. A polícia demorou a procurar o proprietário anterior. A primeira intimação seguiu para Fábio em 26 de setembro, em São Paulo, no endereço mencionado no emplacamento. Fábio não foi localizado, mas a viúva suspeita que alguém metido no esquema soube dos motivos da citação policial e o mandou ficar calado.

No dia 18 de novembro, Fábio tentou suicídio perfurando o abdôme com uma faca na frente da esposa. Acabou morrendo três dias depois com infecção generalizada. A mãe dele, a dona de casa Nadir de Souza Silva, acredita que o motivo tenha sido a desconfiança de uma traição da mulher. Embora reconheça que o filho estivesse diferente naqueles dias, acredita que ele não teria motivos para tentar se matar. "Fábio era jovem (tinha 30 anos), era muito feliz e se dava bem com todo mundo", diz a mãe. Tinha o apelido de Vitrola, de tanto que falava.

Para a viúva, havia mais do que ciúme. "Ele não esconderia da família que tinha um caminhão se não houvesse algo de muito errado por trás", diz. Suspeita que ele estivesse sendo pressionado para não falar sobre o assunto. O suicídio aconteceu dois meses depois da primeira intimação. Ao irmão, José Benedito Gomes de Farias, Fábio confidenciou certa vez que o caminhão estava no nome dele porque o dono tinha o "nome sujo". O verdadeiro proprietário nunca foi identificado.

Após a apreensão do dia 10 de março, o Deic deixou Amilton como fiel depositário do caminhão. Em suas investigações, Sônia descobriu que o número do chassi e o documento do caminhão dela foram usados para esquentar este de São Paulo. A pedido dela, o bloqueio havia sido solicitado pelo delegado Rubens Miranda Júnior, que investiga o desvio do veículo ocorrido na delegacia de Paranaguá. Apreendido novamente no dia 1.º de outubro deste ano, o caminhão aguarda nova perícia do Instituto de Criminalística de Mogi das Cruzes.

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Durante dois anos e meio a autônoma Sônia Regina Fachin fez sozinha o trabalho que a polícia deveria ter feito, mas não fez. A Corregedoria da Polícia Civil ainda não sabe explicar como um caminhão apreendido por desvio de carga saiu da delegacia de Paranaguá com o documento falso contendo a foto de um traficante morto um ano antes. A persistente Sônia não só desvendou o caso como descobriu como e onde o veículo foi esquartejado. A cabine ficou no Paraná, o motor acabou num desmanche de Santa Catarina, o documento serviu para esquentar um caminhão roubado em São Paulo e o bitrem simplesmente desapareceu.

A história teria começado com uma tentativa de extorsão policial e se arrasta por quase três anos num enredo de contradições que inclui ainda o estado de Minas Gerais. A vítima? A própria Sônia, dona do caminhão, que revelou-se uma cidadã indignada com o descaso das autoridades públicas. Residente em Maringá, distante 500 quilômetros de onde o veículo ficou retido, durante cinco meses ela tentou reavê-lo pelas vias legais. Entre idas e vindas, constatou o desinteresse de policiais e de serventuários da Justiça. Foi então que resolveu fazer o serviço que decididamente a polícia não faria.

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O caminhão foi apreendido em 23 de março de 2005 no Porto de Paranaguá com 13 toneladas a menos de soja do que informava a nota fiscal. O delegado José Inocêncio Tadeu Bello acusou desvio de carga. Sônia diz ter deixado parte em São Jorge do Ivaí porque o câmbio do caminhão Iveco quebrou e o substituto, um Scânia, placa JNW-9913, não suportaria toda a carga. Belo não aceitou a justificativa e, segundo Sônia, exigiu R$ 10 mil para liberá-lo. Diante da recusa, teria baixado a propina pela metade. "Também não aceitei pagar porque não tinha nada de irregular", diz Sônia.

Ela pagou fiança de R$ 400 para soltar o motorista, Fernando de Lima, enquanto tentava na Justiça a devolução do veículo. Dia 6 de junho, protocola pedido de restituição do caminhão. Passa julho, passa agosto, entra setembro e nada de resposta. Os pedidos de informações via telefone são sempre respondidos de forma evasiva por funcionários do Fórum. Três meses depois de protocolado o pedido, descobre que o documento sequer havia sido anexado ao processo. Sai do Fórum direto para a delegacia. Nova surpresa.

O caminhão fora entregue a outra pessoa no dia 27 de maio. A foto da identidade usada na transação seria do traficante de drogas Agenor Alves Fogassa, morto um ano antes em disputa do tráfico. A foto teria sido reconhecida pela viúva e por amigos do finado. O único dado verdadeiro no documento era o nome de Mário Sérgio Dias, com quem Sônia tinha um contrato de compra e venda e no qual estava registrado o veículo. "Como não liguei e nem fui à delegacia, acharam que o caminhão era ‘cabrito’ (roubado) e decidiram montar documentos falsos para retirá-lo", presume.

O caso foi parar na Corregedoria da Polícia Civil e no Ministério Público, que há quatro meses ofereceu à Justiça denúncia por peculato contra Bello e mais quatro policiais. A pena, neste caso, varia de 2 a 12 anos de reclusão. A súmula da promotora de Justiça Marla de Freitas Blanchet diz o seguinte: "com vontade livre e cientes da ilicitude de suas condutas, com ânimo criminoso, desviaram o caminhão Scania modelo T-113h, de cor branca, placa JNW-9913". A promotora apresentou a denúncia com base em parte da investigação da Corregedoria a que teve acesso, mas pedirá o aditamento do restante das provas.

A investigação da Corregedoria ainda não foi concluída. Destacado para acompanhar o caso, o delegado Agenor Salgado Filho é substituído sete meses depois pelo delegado Rubens Miranda Júnior, de Antonina. Sônia não se dá por satisfeita, faz uma investigação por conta própria e produz mais da metade das 3.500 páginas de documentos do processo que está nas mãos do delegado. Assim, reconstituiu o percurso das peças e do documento do caminhão em quatro estados brasileiros.

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Em 17 de agosto, ou 82 dias após retirado o caminhão da delegacia, Jairo Ferreira paga R$ 36 mil por um Scania idêntico em Betim (MG). Ele assina um termo se comprometendo a baixá-lo do Renavam, por se tratar de veículo batido, mas não faz a baixa e o documento é usado para esquentar a cabine de Sônia, enquanto a verdadeira sucata vai parar na Autopeças Amaral, em Itajaí (SC), onde o caminhão de Sônia havia sido desmanchado. Por descuido, a cabine sinistrada continua com o número do registro na Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), em nome da antiga dona, Tânia Trindade Lobo.

O caminhão de Tânia sofrera um acidente em 13 de julho de 2005 em Carmo da Cachoeira (MG). A cooperativa à qual estava agregado (Apacoop) decidiu pela perda total, apesar de o acidente não ter sido grave. A proprietária foi indenizada e o caminhão vendido como sucata, embora a parte danificada tenha sido apenas a cabine. Jairo Ferreira compra em 18 de agosto, mas só dia 17 de outubro assina o termo de responsabilidade para baixá-lo no Renavam, o que nunca faria. O novo lance desta transação viria uma semana depois da aquisição em Minas Gerais.

No dia 24 de agosto, outra identidade falsa de Mário Sérgio Dias e um comprovante de residência também falsificado são usados para emitir a segunda via do Certificado de Registro de Veículo (CRV) e transferir o veículo de Sônia de Maringá para Curitiba. Depois, o caminhão seria transferido em 4 de outubro para São Paulo e em 10 de março do ano seguinte (2006) para São Bernardo do Campo. O bloqueio no Detran do Paraná foi requerido pelo delegado Agenor Salgado Filho em 29 de setembro de 2005. "Estão usando os documentos para esquentar outro caminhão roubado", conclui Sônia.

Um dia antes da transferência de fachada para São Paulo, ela recuperaria o motor, o diferencial, a caixa de direção, o câmbio e o chassi recortado no desmanche em Itajaí. "Estava tudo condenado", lamenta. Soltos após cinco dias na prisão, os donos respondem em liberdade ao processo por receptação de peças roubadas. Ali estava a cabine vinda de Minas. Já a cabine de Sônia estava sobre o caminhão de Tânia, placa JZC-9107, que deveria ter sido baixado no Renavam mas fora restaurado e estava circulando em Paranaguá.

No mesmo dia em que ela consegue um pedido de busca e apreensão desta cabine, 18 de novembro, o caminhão é transferido para Carlos Antonio Fanini Gonçalves, com alienação ao Bradesco. A inversão de uma letra da placa, de JZC para JCZ, atrasou a perícia, que só aconteceu dia 19 de dezembro. Sônia reconheceu 16 detalhes da cabine, mas o perito criminal considerou tudo em ordem. Ela não se deu por satisfeita e após muita insistência, o mesmo perito comprovaria as irregularidades em outubro de 2006. Desde então, a cabine está recolhida no pátio da Polícia Militar em Paranaguá, aguardando a conclusão do inquérito da Corregedoria.

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"A versão dela é mentirosa"

Responsável pela liberação do caminhão Scânia JNW-9913 por meio de documentos falsos, o delegado José Tadeu Inocêncio Bello é acusado de tentar extorquir a autônoma Sônia Regina Fachin em R$ 10 mil no momento da apreensão do veículo, ocorrida em 23 de março de 2005 no Porto de Paranaguá. "A versão dela é mentirosa", rebate Bello. "É a palavra de uma pessoa que tem várias passagens (pela polícia) contra a de uma autoridade policial", diz o delegado.

Sônia acusa ainda a advogada Regina Sayuri de intermediar as negociações, que na época negou a acusação. "Liguei para o Valdeci (de Lima, ex-marido de Sônia) oferecendo um acordo com a empresa que deveria receber a carga, para que fosse devolvida a soja que faltou", disse a advogada. O caminhão havia sido retido por desvio de carga, porque havia 13 toneladas a menos de soja do que informava a nota fiscal. "Em nenhum momento falei pelo delegado", defende-se.

Segundo Bello, Sônia acusa-o de ter telefonado oferecendo um advogado, mas no primeiro depoimento na Promotoria de Investigações Criminais ela diz que a indicação da advogada para o habeas corpus do motorista foi feita por uma empresa de Paranaguá. "Nunca liguei, ela dá duas versões do mesmo fato." Ele diz que policiais ligaram primeiro para Valdeci avisando da prisão e depois para Mário Sérgio Dias, em cujo nome estava registrado o caminhão, para comunicar a liberação do veículo.

Bello diz ser normal o procedimento de entrega do veículo ao proprietário quando não há mais interesse na investigação. "Isso é praxe em qualquer unidade policial", garante. "Alguém chegou na delegacia portando os documentos do caminhão e do proprietário. A mim só foi levado os documentos e autorizei a liberação". Segundo ele, a vítima do desvio de carga era dono de uma transportadora em Cascavel e pai de dois delegados. "Eu não sou idiota de tentar qualquer tipo de coisa tendo o pai de um colega do outro lado."

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O dono do silo onde estavam as 13 toneladas supostamente desviadas, Luiz Ribeiro, citou Sônia e o ex-marido no inquérito policial. Segundo ele, a princípio Sônia lhe pediu para guardar a mercadoria, pois o caminhão havia quebrado e não suportaria o peso, mas um tempo depois insinuou negociação com a soja. Sônia nega a acusação.

O delegado parte para a ofensiva. "Ela, o marido dela e o próprio Mário Sérgio sabiam que o caminhão estava disponível", insinua. "Eu acho que alguém do grupo deles, que é um grupo de malandros mesmo, veio, talvez todos eles, retiraram o caminhão da delegacia usando das informações que tinham do documento falso e posteriormente desviaram a carga só que daí resolveram entrar com essa situação toda."