Após críticas à resolução que restringia o uso medicinal de produtos com canabidiol, uma das substâncias extraídas da maconha (cannabis sativa), o Conselho Federal de Medicina (CFM) decidiu suspender o documento, baseado em mais de 6 mil artigos científicos, no dia 25 de outubro, e abriu uma consulta pública para receber novas contribuições sobre o tema até o dia 23 de dezembro deste ano.
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Essa é a segunda consulta pública aberta pelo CFM sobre o assunto no mesmo ano. A primeira transcorreu de 1º a 31 de julho de 2022, quando foram enviadas 330 manifestações de manutenção ou alteração de artigos da Resolução CFM nº 2.113/2014, que até então regulamentava o uso compassivo do canabidiol para o tratamento de epilepsias em crianças e adolescentes refratárias aos tratamentos convencionais.
Ao prestar esclarecimentos sobre a resolução, o CFM disse que "compreende os anseios de pacientes e seus familiares com respeito ao tratamento de doenças", mas lembra "ser fundamental que todas as decisões sobre o uso ou não de determinadas substâncias sejam tomadas de forma isenta", a partir de parâmetros da chamada Medicina Baseada em Evidências.
"As conclusões (dos estudos e contribuições) apontam para evidências ainda frágeis sobre a segurança e a eficácia do canabidiol para o tratamento da maioria das doenças, sendo que há trabalhos científicos com resultados positivos confirmados apenas para os casos de crises epiléticas relacionadas às Síndromes de Dravet, Doose e Lennox-Gastaut", informou o CFM.
Sobre o uso do canabiol, o Conselho "considera prudente aguardar o avanço de estudos em andamento, evitando expor a população a situações de risco".
Muita briga e pouca evidência
A discussão sobre o uso clínico de certas substâncias da cannabis, como canabidiol e o tetrahidrocarbinol (THC), não é de hoje e o assunto tem sido politizado e judicializado no Brasil, com discussões no Congresso Nacional e no Judiciário.
Apesar de entidades que estimulam o uso do canabidiol, como a Abra Cannabis e a WeCann, divulgarem alguns indicadores positivos de pesquisas finalizadas ou ainda em andamento sobre o uso da substância, o fato é que ainda não existem evidências científicas definitivas dos supostos benefícios da substância para a maioria das doenças, com exceção dos casos citados pelo CFM - pacientes com crises epiléticas relacionadas às Síndromes de Dravet, Doose e Lennox-Gastaut.
Em relação a doenças mentais, em julho desse ano, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) publicou um posicionamento oficial contra o uso de elementos da cannabis para essas enfermidades, lembrando que elas podem causar dependência química, desencadear quadros psiquiátricos ou piorar os sintomas de enfermidades já diagnosticadas.
Na opinião do psiquiatra Ronaldo Laranjeira, especialista em dependência química e professor da Unifesp, existe uma "ideologia da maconha", em que se desprezam as pesquisas científicas mais avançadas que mostram os efeitos contrários da substância.
"Essa ideia em relação a maconha de que vai resolver uma infinidade de problemas é fruto de uma cultura da maconha e de interesses econômicos. Não tem estudo sério sobre o efeito comprovado da maconha, não existe nenhuma substância que possa ser boa para autismo e demência, não existe isso. É uma ilusão tamanha, uma ingenuidade quase criminosa", explicou Laranjeira.
O psiquiatra ressalta que o canabidiol apresenta benefícios apenas em casos de convulsões, e que vem sendo estudado com "possível sucesso" para o tratamento de esclerose múltipla e epilepsia. Porém, ele faz um alerta para o uso indiscriminado contra qualquer doença.
"A maconha não pode ser tratada como uma droga milagrosa, é só fazer um chá e vai dar certo. A medicina não funciona assim, não é seguro para ninguém virar curandeiro da maconha. E é isso que tem acontecido no Brasil. São necessários ainda estudos para ter uma medicação, e não apenas o uso compassivo", alertou.
O psiquiatra e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, Alexander Moreira, afirmou em uma outra matéria da Gazeta do Povo, que existe uma "afobação" em torno desse assunto, com o intuito de legalizar a maconha no país. "Apresentam a maconha medicinal terapêutica diminuindo o senso de risco para facilitar a ideia de que liberar a maconha seria benéfico", destacou.
Em dezembro de 2019, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberou a importação dos extratos de canabidiol e THC para a fabricação de produtos no Brasil. Na época, a agência definiu que esses compostos seriam marcados com "tarja preta", pelo risco de dependência, aumento de tolerância (a necessidade de ingerir quantidades cada vez maiores para ter o mínimo efeito desejado) e intoxicação. Os 20 produtos até agora com esses elementos aprovados pela agência (não são considerados medicamentos por falta de evidência científicas consolidadas de eficácia) precisam ser prescritos com receita amarela (índice de THC menor de 0,2%) ou azul (índice de THC maior de 0,2%, maior risco).
O único medicamento à base de THC e canabidiol aprovado para ser importado no Brasil é o Mevatyl, produzido no Reino Unido. Ele foi aprovado pela Anvisa como remédio adjuvante no tratamento de espasticidade na esclerose múltipla, causada por danos ou lesões na parte do sistema nervoso central (cérebro ou medula espinhal) que controla o movimento voluntário.
Estudos apontam riscos, imprecisões e incertezas
Ao mesmo tempo em que não existem evidências comprovadas em relação a benefícios para a maior parte das doenças, diversos estudos confirmam os riscos do uso da maconha e seus derivados. Um deles, por exemplo, realizado em hospitais públicos de Portugal revelou que internações por surto psicótico ou esquizofrenia ligados à cannabis cresceram 30 vezes no país em um período recente de 15 anos. O levantamento foi publicado na revista científica International Journal of Methods in Psychiatric Research.
Em um artigo intitulado Cannabis medicinal: muita briga e pouca evidência, na Revista Questão de Ciência, André Bacchi, professor de Farmacologia (UFR) e especialista em medicina baseada em evidências, apontou uma série de ensaios clínicos que não têm qualidade suficiente para guiar decisões clínicas sobre o uso da cannabis. No texto, ele traz informações de pesquisas sobre o canabidiol testado em casos de fibromialgia, demência, autismo, dor neuropática crônica e outros, todos com efeitos pequenos, sem relevância clínica.
"A maioria dos estudos sobre uso medicinal da cannabis é exploratória. São trabalhos que geram hipóteses e mapeiam um campo ainda pouco estudado, mas que não servem como base sólida para a prescrição clínica", escreve Bacchi.
Discussão judicializada
Mesmo sem evidências científicas, o número de decisões judiciais favoráveis à plantação doméstica de maconha para uso medicinal tem crescido no Brasil, apesar dos riscos de dependência e intoxicação da planta consumida ou fumada. Influenciados pela campanha de desinformação de empresas interessadas na liberação da droga no Brasil, juízes têm liberado a prática sem considerar que é praticamente impossível extrair em casa o canabidiol e o THC – duas das mais de 1.700 substâncias químicas da cannabis – com a pureza e na quantidade segura para uso medicinal.
A decisão mais recente ocorreu em junho deste ano. A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STF) garantiu a três pessoas a possibilidade de cultivar a planta da maconha (cannabis sativa) com a finalidade de extrair óleo medicinal para uso próprio, sem sofrerem qualquer repressão por parte da polícia e do Judiciário. Esta e outras decisões contribuem para elevar a circulação de extratos clandestinos de canabidiol caseiro, muitos dos quais não funcionam e podem oferecer efeitos colaterais e nocivos para quem os consome.
O que está em jogo no Congresso sobre o assunto
No Congresso, o lobby da maconha tenta a todo custo aprovar o Projeto de Lei 399/2015, que libera o plantio da maconha no Brasil para uso recreativo, industrial, comercial e medicinal de determinados componentes da planta. O projeto já foi aprovado pela comissão especial da Câmara dos Deputados e aguarda análise no Plenário da Casa.
Caso o projeto seja aprovado, será possível plantar maconha, e não apenas importar seu princípio ativo. Especialistas apontam que, se isso ocorrer, com a facilidade de acesso à planta, os malefícios vão superar os benefícios esperados: aumento no número de dependentes, dos gastos públicos com a saúde e falta de produtividade de viciados, a potencialização do tráfico, entre outros.
"A legalização da maconha significa promover a destruição das pessoas e da sociedade. É uma desgraça o que as drogas têm causado", disse o deputado federal Pastor Eurico (PL/PE), em uma das sessões de debate sobre o projeto. Uma pesquisa divulgada pelo PoderData em julho deste ano, apontou que 37% dos brasileiros rejeitam a liberação da maconha em tratamentos médicos, enquanto que 54% são favoráveis à liberação. Outros 9% não sabem ou preferem não opinar sobre o tema.
Com o Congresso apresentando uma tendência mais conservadora na próxima legislatura, o PL 399/2015 deverá enfrentar forte resistência. Mas, se depender do presidente eleito para os próximos 4 anos, Luiz Inácio Lula da Silva, a defesa da legalização da maconha, pauta defendida por partidos de esquerda, poderá ganhar maior impulso.
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