STF está julgando caso em que ministro Alexandre de Moraes seria vítima.| Foto: Carlos Moura/SCO/STF
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A Procuradoria-Geral da República (PGR) denunciou na terça-feira (16) ao Supremo Tribunal Federal (STF) o empresário Roberto Mantovani Filho, a mulher dele, Andreia Munarão, e o genro do casal, Alex Zanatta Bignotto, por supostas ofensas feitas em julho de 2023 contra o ministro Alexandre de Moraes, no Aeroporto Internacional de Roma.

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O caso, cuja próxima etapa – acatar ou não a denúncia – está nas mãos do ministro relator, Dias Toffoli, é emblemático do poder de que o Supremo se revestiu nos últimos anos: há, em um mesmo processo, atropelos evidentes de normas constitucionais, da legislação penal e de prerrogativas dos advogados em benefício de interesses dos ministros.

Em junho, quando o processo já parecia arquivado e esquecido, a Polícia Federal (PF) indiciou os três alvos da denúncia recente da PGR, o que causou estranhamento em juristas, que viram na reabertura de processo sem fato novo uma medida insólita. Após uma troca de delegados na PF, um novo delegado assumiu o caso e indiciou os três afirmando que a versão de Moraes era "totalmente coerente e apoiada nos demais meios de prova".

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Juristas consultados pela Gazeta do Povo enumeraram, nos últimos meses, as ilegalidades do processo:

  • o caso dos Mantovani não poderia ser investigado no Brasil, já que os crimes de injúria, difamação, ameaça e lesão corporal têm todos pena menor que dois anos de prisão, o que não permite que um caso ocorrido no exterior tenha sua persecução penal no Brasil. Para trazer o processo para o país, o STF decidiu alegar que havia suspeita de "abolição violenta do Estado Democrático de Direito", crime cuja pena varia de 4 a 8 anos de prisão;
  • o STF não seria o juiz natural do caso mesmo que ele tivesse ocorrido no Brasil;
  • a busca e apreensão feita contra a família é ilegal;
  • a defesa foi vítima de uma quebra de prerrogativa da advocacia ao não receber as imagens das câmeras;
  • o vazamento das conversas entre o advogado de defesa e o cliente é um escândalo sem precedentes.

"O que a gente vê é que, mais uma vez, o STF está passando por cima das regras legais, constitucionais, para exercer poder. A gente pode colocar essa ação do tribunal como mais um exemplo, ao lado de tantos outros, dos inquéritos abertos ilegalmente, das prisões de parlamentares e assim por diante", resume Alessandro Chiarottino, doutor em Direito Constitucional pela USP.

Recentemente, em depoimento à Gazeta do Povo, o advogado de defesa da família Mantovani, Ralph Tórtima, classificou a investigação como "arbitrária, marcada por abusivas e reiteradas ilegalidades" e a denúncia da PGR como "parcial, tendenciosa e equivocada sob inúmeros aspectos, inclusive técnicos".

Elite do Judiciário e do MP está transformando sistema acusatório em inquisitório, diz jurista

Para a consultora jurídico Katia Magalhães, "o escarcéu promovido pelo ministro Moraes, pela PF e, agora, pela autoridade máxima do Ministério Público, a PGR, configura um atentado explícito a todos os princípios constitucionais sobre a atuação do Judiciário e sobre os direitos individuais a julgamentos justos e fundamentados".

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Ela enumera as diversas ilegalidades do processo da família Mantovani. Em primeiro lugar, destaca o fato de que pessoas sem foro privilegiado têm sido julgadas com frequência pelo STF. "A reiterada prática abusiva, ilustrada pelo caso da família Mantovani, de submeter não ocupantes de cargos públicos à jurisdição originária do Supremo consiste em um menosprezo às atribuições funcionais de todos os demais magistrados brasileiros", afirma.

Também há, segundo ela, uma afronta ao devido processo legal, já que "todo um aparato investigativo-punitivo foi acionado sem a exibição de uma prova, sequer de um indício de prática delitiva". "Desde o início, os investigados não tiverem acesso à definição circunstanciada dos fatos a ele imputados, o que inviabilizou sua defesa, tornando-os alvo de acusações cuja natureza não foi reportada nem a eles, nem a seus advogados", diz.

Katia também destaca o desrespeito à prerrogativa da defesa na exposição de conversas confidenciais com seus representados, "sem qualquer fundamento robusto que tivesse autorizado a quebra do sigilo na relação advogado-cliente".

A decisão recente do PGR de denunciar os envolvidos, apesar de ciente de todas as gritantes irregularidades, assinala um conluio entre supremos juízes arbitrários e a cúpula do Ministério Público. Em suas atribuições de fiscal da lei e titular da maioria esmagadora das ações penais, teria cabido ao PGR o poder-dever de arquivar o caso, e até de assinalar, em seu despacho de arquivamento, todos os desmandos praticados contra os envolvidos. Contudo, faltou com todas as suas atribuições constitucionais para endossar os desejos dos togados.

"Contrariamente aos investigados no caso do aeroporto – contra os quais, reitere-se, não foi apresentada uma evidência sequer! -, os membros do Judiciário, da Polícia Federal, e o procurador-geral poderiam e deveriam ser responsabilizados por sua conduta, tanto no plano cível quanto no criminal", critica.

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Para ela, "diante da reiterada quebra de paradigmas constitucionais, a elite do Judiciário e do Ministério Público vem transformando o nosso sistema processual acusatório em um sistema inquisitório, onde investigados perdem o status de sujeitos de direito para se tornarem meros objetos de análises aleatórias e imprevisíveis dos julgadores". "Trata-se de enorme retrocesso institucional, que não encontra resistência por parte de um Senado inerte no acionamento dos mecanismos de freios e contrapesos para a contenção dos abusos do poder não eleito", conclui.