A ex-ministra Damares Alves, eleita senadora pelo Distrito Federal, ainda não apresentou dados que comprovem as denúncias de crimes, como a retirada de todos os dentes de crianças para abuso sexual, feitas em vídeo que está sendo investigado pelo Ministério Público Federal (MPF), sobre a ilha do Marajó, no Pará. Independentemente disso, fato é que casos de exploração sexual e pedofilia são investigados há décadas na região e foram alvo de inquérito iniciado a pedido da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados, em 2006.
Em abril de 2006, o bispo emérito de Marajó, Monsenhor Dom José Luiz Azcona, apresentou denúncias ao chefe de Gabinete do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Gilberto Carvalho, e ao presidente da CDHM na Câmara, deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (PT/SP) sobre casos de adolescentes que estariam sendo vítimas de exploração sexual no município de Portel (PA).
O presidente da comissão na época e o deputado Luiz Couto (PT/BA), com o assessor Amarildo Formentini, viajaram para o Pará, em maio de 2006, com o objetivo de apurar denúncias sobre a existência de uma rede de prostituição infantil na região próxima à Ilha de Marajó.
O relatório da viagem consta no Ofício nº 10/06-S, de 11/04/2006, disponível no site da Câmara dos Deputados. Segundo as denúncias, recebidas pela CDHM, a rede contava com o envolvimento de políticos locais.
Depoimentos reforçam exploração sexual de menores
Entre os depoimentos colhidos, durante uma audiência pública em Portel, dois vereadores foram acusados de estupro de menores. Uma jovem de 13 anos relatou que ao sofrer “todos os tipos de abusos sexuais possíveis” foi ameaçada de não poder voltar à escola e de sua família passar fome caso não fizesse o que agressor mandava.
No relatório da audiência, consta o depoimento do pai de um dos vereadores acusados e também vice-prefeito de Portel na época, que “condenou a atitude da imprensa em estampar o problema a nível nacional, pois segundo ele, não existe prostituição infanto-juvenil no Município de Portel”.
O bispo do Marajó criticou a fala do vice-prefeito e ratificou as denúncias que havia feito sobre a exploração de crianças e adolescentes, não apenas no município de Portel, mas também em toda a ilha de Marajó.
“O Município de Portel está sofrendo com a exploração sexual infantil, os adolescentes são oferecidos livremente em vários lugares, acarretando descaso das autoridades”, escreveu Formentini, assessor da CDH. Formentini veio a falecer em dezembro de 2007, em um acidente rodoviário no Pará, quando estava apurando denúncias locais sobre exploração sexual e tráfico de crianças e adolescentes.
Como parte das investigações, o assessor da Câmara já havia informado em um relatório da comissão que chegou a se infiltrar entre os aliciadores, disfarçado de contratador de meninas que seriam levadas para Belém e, de lá, para a Guiana Francesa, onde se prostituiriam.
“Da incursão pelos casos de abusos sexuais, aliciamento e tráfico internacional de pessoas no município de Breves, resultou farto material audiovisual (aproximadamente 10 horas de gravações, entre imagens e áudio) que, encaminhado ao Ministério Público Federal em Belém, subsidiou o processo que culminou com a prisão do aliciador e de um 'coiote' (pessoa responsável pela travessia das jovens do Brasil para Guiana Francesa)”, explica o relatório.
Omissão do Executivo e Judiciário
No ano de 2008, Dom José Azcona voltou a denunciar que crianças entre 12 e 14 anos estavam se prostituindo em troca de comida nos municípios de Breves, Portel e Melgaço no norte do Pará. O bispo ainda acusou o Executivo e o Judiciário paraense de "total omissão" e de nada fazerem para combater esta "vergonha pública".
"Levadas em muitos casos para a prostituição pelos próprios pais, elas abordam passageiros que transitam de barco pela região e oferecem o corpo em troca de dois quilos de carne e cinco latas de óleo de cozinha, para matar a fome da família", afirmava o bispo.
De acordo com o bispo, as Polícias Civil e Federal, além do Ministério Público (MP), não demonstraram nenhum interesse em investigar a exploração sexual de crianças e adolescentes para punir os responsáveis ou combater o tráfico humano de mulheres do Marajó para a Guiana Francesa e a Europa. As informações foram divulgadas pelo Estadão na época e nenhuma das instituições citadas comentaram sobre as acusações. "A impunidade dos criminosos é completa no Estado", afirmou o religioso.
CPIs da Pedofilia e Exploração Sexual de crianças e adolescentes
Com o objetivo de investigar e apurar a prática de crimes de pedofilia, foi criada em 2008, no Senado, a CPI da Pedofilia, cujo os trabalhos foram encerrados em 2010. Em suas recomendações aos estados, o relatório de quase 1.700 páginas sugere medidas de contenção da pedofilia no Pará. Uma delas solicita ao Tribunal de Justiça do estado a criação de comissão interna especial para apreciar com prioridade os processos de exploração sexual de crianças e adolescentes.
De acordo com o relator da CPI, o ex-senador Demóstenes Torres (DEM/GO), o estado do Pará havia apresentado casos "ostensivos" de pedofilia, com o envolvimento de autoridades.
"O caso da Ilha de Marajó é crítico. A equipe técnica do Cedeca-Emaús fez um levantamento, em 2007, nos municípios de Portel e Breves, e encontrou uma realidade estarrecedora. O Fantástico, programa da rede Globo, também levou ao ar, no dia 31 de maio último, reportagem sobre Portel, mostrando caso em que a própria mãe comercializava o corpo das filhas", escreveu o relator no relatório final.
Na Câmara dos Deputados, a CPI da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes atuou entre 2012 e 2014 na apuração de denúncias de exploração sexual de crianças e adolescentes em todo o território nacional, assim como de redes criminosas destinadas a promover essa prática ilícita, com questionamentos sobre a falta de ações de combate estatal.
A comissão foi presidida pela deputada federal Érika Kokay (PT/DF) e a relatora foi Liliam Sá (PSD/RJ). O relatório final com mais de 600 páginas foi apresentado em 4 de junho de 2014.
Como parte dos depoimentos colhidos pela CPI no Pará, consta um da Coordenadora da Comissão de Justiça e Paz, do Regional 2 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil — CNBB, irmã Marie Henriqueta, confirmando os casos de exploração sexual na Ilha do Marajó. Ela relata o caso de crianças que vão vender óleo nas balsas e não retornam, sendo apreendidas por exploradores sexuais.
“As crianças vão se prostituir, são obrigadas a colocarem o seu corpo a serviço da exploração porque não têm comida dentro de casa. Nessa região, o Conselho Tutelar é porta de entrada para esses crimes e há muitos conselheiros tutelares coniventes e até envolvidos diretamente nessas práticas”, disse Marie em uma audiência pública realizada na Câmara dos Deputados, em 2012.
Outro depoimento do relatório reforçou que no Marajó “existe uma das situações mais terríveis do Estado do Pará, quem sabe do Brasil e até do mundo. Precisamos urgentemente dar soluções para o que acontece em Marajó”.
"Dados amplificados"
Em entrevista recente ao Portal Uruá-Tapera (jornal local do Pará), publicada no último dia 10 de outubro, o bispo emérito falou sobre as declarações da ex-ministra Damares Alves. Segundo Dom Azcona, a exploração sexual e o tráfico de menores existem, porém, segundo ele, Damares teria apresentado dados “amplificados”.
“Sabemos que existe esse tráfico para outras nações e também dentro do Brasil, porém ela (Damares) apresenta esse dado amplificado, dando a impressão de que as crianças do Marajó, em grande parte, ou pelo menos em parte notável, são traficadas para o Exterior, e a consequente apresentação do presidente Bolsonaro como defensor das crianças do Marajó e de todo o Brasil, para essa finalidade, é o que ela prega e por isso desenvolve o tema de abuso sexual de crianças especificamente do Marajó”, disse.
O bispo ainda informou que “não se pode afirmar que crianças marajoaras traficadas sofram o martírio de seus dentes arrancados ou que deixem livres seus intestinos com alimentos pastosos a fim de propiciar o sexo anal, isso ela não pode assegurar das crianças do Marajó que eventualmente sejam traficadas, porque de fato são traficadas”.
Sobre a afirmação da ex-ministra de que bebês seriam abusados sexualmente, o bispo disse ao jornal local que não tem dados para confirmar isso ou que seja uma realidade frequente e comum no Marajó. “Creio que não corresponde à verdade dos fatos”, declarou Dom Azcona.
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