Isabel Tchicoco Yambi gosta de se vestir com roupas que remetam à África. Dessa forma, sente-se mais próxima da Angola, sua nação. Mas é pelo tato e não com os olhos que ela escolhe as peças de seu armário. Isabel perdeu a visão ainda criança. Desde 2001, mora em Curitiba, com um grupo de outros nove cegos angolanos. Todos estão sob risco de ter de regressar, por pressão do consulado do país africano, que quer deixar de pagar as bolsas com as quais os jovens se mantêm por aqui. E eles querem ficar.
"Chegamos com idades entre 7 e 10 anos. Passamos a maior parte da vida aqui. Todos estudamos, fazemos faculdade e queremos nos formar e ter independência", explica Isabel, que acaba de concluir o penúltimo ano de Direito.
As ameaças de repatriamento se tornaram ultimato em 20 de novembro, quando dois representantes do Consulado Angolano procuraram o grupo e decretaram: o convênio seria rompido e os jovens teriam que voltar a Angola. Eles deixariam de receber as bolsas (cada um ganha R$ 1 mil, para custear parte do aluguel e despesas pessoais) e teriam que embarcar ao país de origem no começo de 2015.
"[Os representantes do consulado] disseram: Não tem conversa. Está decidido. Podem espernear. Não nos deram nenhuma justificativa", conta Prudêncio Jeferson Tumbika, que iniciará em 2015 o terceiro ano de Jornalismo.
Cegueira
Os angolanos vieram ao Brasil 14 anos atrás, por intermédio da ONG angolana Fundação Eduardo Santos (Fesa). Todos eram cegos a maioria perdeu a visão em decorrência do sarampo. Angola vivia sob a turbulência de uma guerra civil e, aqui, seriam educados.
Por dez anos, moraram no Instituto Paranaense de Cegos (IPC): passaram pela alfabetização, tiveram aulas de AVD (Atividade da Vida Diária) e de informática, concluíram outros cursos e praticaram esportes. Desde 2011, moram em duas repúblicas: uma na Mercês, outra no Bairro Alto.
Permanência
Os dez angolanos portam um visto de cortesia, concedido pelo Itamaraty e válido até abril de 2015. Com esse documento, não podem trabalhar ou constituir empresa. Dependem da bolsa e do auxílio dos amigos.
A Defensoria Pública da União entrou com um pedido de permanência a todo o grupo. Com esse benefício, poderiam exercer atividade remunerada.
Paralelamente, o Centro Universitário Uninter onde sete dos angolanos estudam também se mobiliza para que os jovens possam permanecer no Brasil. A faculdade vai entrar com um pedido de nacionalidade brasileira aos angolanos, com base no artigo 12.º da Constituição.
A Gazeta do Povo tentou contato com o Consulado da Angola, mas as ligações não foram atendidas.
Apelo
"A gente quer trabalhar", dizem africanos
Trajando roupa social, Maurício Dumbo toca ao teclado "Dança Kuduro". Ao seu lado, igualmente bem vestido, Jacob Cachinga se requebra, acompanhando a melodia. Sentado à mesa, Prudêncio Tumbika só para de cantar para imitar o apresentador Fausto Silva: "Ô, louco, meu. Direto da Angola". Nas duas casas em que vivem é assim: música o tempo todo.
Os jovens que formam o grupo "Cantores de Angola" anseiam pela permanência, com a qual poderiam trabalhar no Brasil.
Até se formarem todos frequentam cursos superiores a música seria a principal fonte de renda. "Hoje, recebemos muitos convites para shows e apresentações. Mas não podemos cobrar por isso. Nós queremos ter o direito de trabalhar", conta Jacob Cachinga.
Talentos
Além disso, os jovens têm outros talentos. Jacob é professor de dança. Só pelo ruído dos passos, sabe se aluno está errando o movimento ou dançando fora do ritmo. Chegou a lecionar, como bolsista, na escola Edson Carneiro. Isabel Yambi concluiu curso de telefonista. Maurício é craque no futebol de cinco (o futebol de cegos). Já recebeu convite para integrar a seleção brasileira, mas, como ainda não pôde se naturalizar, permanece fora do time. "Eu sou como o Ganso [jogador do São Paulo]. Jogo fácil", diz Maurício. "Nunca vi o Ganso jogar, mas é o que dizem", completa.