"É o apocalipse se aproximando! A ira de Deus vai inundar a Terra", grita uma fanática religiosa em cima de um pequeno banco, diante do Parque Madeira Mamoré, principal ponto turístico de Porto Velho. A pregação parece fazer algum sentido para quem olha ao redor. Ruas alagadas, casas com água até o telhado, e balsas circulando no lugar de carros formam o cenário. A maior cheia da história do Rio Madeira, pela 1ª vez perto de atingir 20 metros acima do nível normal - o recorde anterior, de 1997, era de 17,52 metros -, já desalojou aproximadamente 20 mil pessoas na capital de Rondônia, num total de 4,5 mil famílias. E esse número, assim como o rio, não para de subir.
O problema começou em dezembro de 2013, com a elevação do Rio Beni, que nasce na Cordilheira dos Andes como Madre de Dios antes de encontrar o Rio Mamoré e dar origem ao Madeira. As consequências podem ter sido agravadas pela erosão das encostas, provocada pelas duas usinas hidrelétricas em operação no rio há menos de um ano - uma delas, a de Santo Antônio, fica a cinco quilômetros de Porto Velho. Agora, na Rua Rogério Weber, uma das vias mais importantes, a água já chega ao segundo andar do Tribunal Regional Eleitoral e do Fórum Eleitoral. Em alguns pontos, o rio foi cidade adentro por até dez quadras, expulsando moradores e piorando o já complicado trânsito.
Responsável pela fundação de Porto Velho, que em outubro comemora cem anos, a lendária Estrada de Ferro Madeira-Mamoré está com seu patrimônio ameaçado. Locomotivas centenárias estão debaixo d'água. A estrutura de aço do antigo galpão, que hoje abriga o museu da linha férrea, inaugurada em 1912 e desativada sessenta anos depois pelo regime militar, dá sinais de enfraquecimento, pois a força da água rompeu uma das portas de entrada. Pela brecha, é possível ver o mobiliário histórico boiando na superfície dos mais de dois metros de lâmina d'água. Reformado há menos de três anos pelo município ao custo de R$ 11 milhões, o espaço terá que ser recuperado.
"Rondônia vive uma tragédia, mais uma em sua história. As cheias anteriores eram menores e duravam no máximo duas semanas. Essa já tem mais de dois meses", diz o historiador Aleks Palitot, que montou um bunker em volta de casa para a água não entrar, mas a água invadiu a residência mesmo assim.
A cheia do rio tem mudado a rotina da cidade. Na avenida Campos Sales, famílias pescam na água que já tem 1,5 metro de profundidade. No mesmo local, peixes mortos passam dias boiando. O risco de doenças é grande, e duas pessoas estão em observação com suspeita de cólera. Existe a preocupação ainda com o que pode vir depois que o rio baixar: um surto de doenças tropicais, como dengue e malária.
Na Bolívia, a cheia do Rio Beni, que forma o Madeira ao encontrar o Mamoré, causou a morte de 30 mil cabeças de gado. Em Rondônia, foram cerca de 5 mil. Por isso, a Defesa Civil pede que a população pare de pescar imediatamente nos locais afetados.
Trechos da BR-364 alagados
Mas o estrago não é só em Porto Velho. Subindo ou descendo o Madeira, é possível ver o problema causado pela cheia em comunidades ribeirinhas. Algumas se perderam totalmente, como São Carlos do Jamari, um distrito de Porto Velho, que contava com infraestrutura acima da média e onde viviam 400 famílias. O Madeira, um dos rios mais velozes e o 3º com maior carga sedimentar do mundo, engoliu o povoado, restando apenas alguns telhados visíveis por quem sobrevoa a região. As casas abandonadas têm sido saqueadas por "piratas" - bandidos que chegam de balsa, armados, no meio da noite.
"Os ladrões vieram, mas o pessoal saiu atirando e os botou para correr", lembra o ex-soldado da borracha José Primo Diniz, de 93 anos.
O problema do abastecimento de cidades e distritos ilhados preocupa as autoridades. Trechos da BR-364, principal ligação do extremo-oeste brasileiro com o país e única estrada que leva ao Acre, continuam alagados. Em Abunã, a 215 km da capital, um grupo de 25 caminhoneiros ficou cercado por água:
"Estou aqui há oito dias, sem saber quando poderei voltar para casa", conta o caminhoneiro Francisco Vieira Ramalho, de 36 anos, que mora na Paraíba: "Quando cheguei ao trecho interditado, vi a água subindo aos poucos até engolir a estrada. O Madeira é um rio perigoso".
Nos abrigos, histórias de sofrimentos e alegrias
Nos abrigos improvisados de Porto Velho, milhares de pessoas vivem uma dor compartilhada, enquanto outras resistem a sair de casa enquanto podem. Sentado na cama de casal que dividiu durante duas décadas com sua esposa, Raimundo Risomar, de 52 anos, é a fotografia da tristeza. No dia 31 de janeiro, a mulher morreu, após dois anos de batalhas contra um tumor na medula. Apenas duas semanas depois, o pedreiro se viu obrigado a deixar a casa onde viveu todos esses anos. A água do Rio Madeira já estava quase na altura dos joelhos.
"Não queria sair, mas não tive escolha. Abandonar aquela casa foi como se eu estivesse deixando minha mulher para trás", diz ele.
Nascido em Rio Branco, capital do Acre, Risomar foi levado para o maior abrigo da cidade, no ginásio da igreja Nossa Senhora de Fátima, onde 62 famílias vivem provisoriamente. Único morador solitário do local, ele busca alento numa garrafa de cachaça:
"Eu esqueci de salvar as nossas fotos. Isso eu não poderia ter acontecido".
A vida nos abrigos improvisados em igrejas, escolas e prédios públicos é feita de muitas lágrimas e pequenas alegrias. Há de tudo um pouco: de pessoas que tentam apoiar os desconhecidos a viciados em crack. No meio dessa miscelânea, crianças brincam alheias ao drama. Os momentos felizes são raros, mas existem. Como por exemplo quando Maria Oliveira da Silva, de 55 anos, vai para a cozinha.
"Só não gosto que deem palpite quando estou cozinhando. A comida só fica boa se eu fizer tudo sozinha".
Maria vivia no bairro Areal há 32 anos. Na mesma casa:"Nunca imaginei que isso pudesse acontecer. Quem imaginaria o Madeira engolindo Porto Velho?".
Uma história impressionante, também ocorrida na igreja, é a de Andreia Rodrigues. No dia 7 de março, ela deu à luz seu quarto filho, o primeiro menino. Já estava no abrigo.
"Eu estava no banheiro quando a bolsa rompeu. Corri para o quarto e não deu tempo de a ambulância chegar: as mulheres daqui me ajudaram no parto", relata ela. "Nunca mais me esquecerei desse dia".
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