Mário, nome fictício, quase vendeu um rim por US$ 150 mil| Foto: Antonio More/ Gazeta do Povo

Intermediários

Anunciantes revelam ação de agenciadores

O comércio clandestino de rins só se mantém graças à atuação de agenciadores, que fazem a ponte entre vendedores, compradores ou clínicas. Enquanto negociava seu rim, "Mário" conheceu um agenciador de São Paulo, que descontaria uma "comissão" caso a transação fosse fechada.

"Ele disse que encaminhou pessoas, que conseguiram fazer um bom negócio. Cheguei a conversar com algumas que fizeram [venderam o rim], mas eles não falam em valores", diz. "Marília" também negociou com um intermediador, que falava em nome de uma clínica estrangeira.

A GiveWell, organização estadunidense sem fins lucrativos, que ajuda doadores de órgãos, aponta que, normalmente, os agenciadores exploram os doadores, em um processo que não há acompanhamento adequado. "Infelizmente, o ‘corretor de órgãos’ do mercado negro cobra preços abusivos. As pessoas que vendem estão sujeitas à coerção e, frequentemente, recebem um cuidado médico inferior", diz o analista da entidade, Alexander Berger.

Em 2003, a Polícia Federal desbaratou um esquema de compra e venda de rins. A quadrilha funcionava a partir de agenciadores, que enviaram 47 pessoas do Recife para terem órgãos extraídos na África do Sul. Em troca, elas receberam pagamentos que giraram entre US$ 6 mil e US$ 10 mil. Na ocasião, 77 acusados foram denunciadas por tráfico internacional de órgãos.

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Drama familiar motiva venda

Um período de grande turbulência familiar, ocorrido no início do ano passado, fez Marília (nome fictício), de 35 anos, tomar a atitude drástica de tentar vender um de seus rins. Pouco depois de se separar do marido, o filho dela, de 14 anos, foi apreendido por roubo. Em seguida, ela perdeu o emprego e viu as contas se acumularem. Quando a fome ameaçou bater na porta da casa alugada em que vivia com a filha de 8 anos, ela postou o anúncio na internet, tentando vender o órgão. "Foi um momento de desespero. É difícil ver seus filhos numa situação daquelas", desabafa.

Marília pedia R$ 200 mil para se submeter à cirurgia de retirada do rim. Recebeu uma proposta de R$ 80 mil, para ter o órgão extraído na África do Sul. Acabou abandonando a ideia. "Eu pesquisei e imaginei que fosse golpe", conta. "Depois, eu voltei com meu marido. As coisas melhoraram e eu desisti."

O delegado Algacir Mi­ka­lovski, presidente do Sindicato dos Delegados da Polícia Fe­de­­ral no Paraná, explica que, apesar dos debates éticos, quem anuncia a venda de um órgão não pode ser penalizado. "É um ato preparatório para um crime. Ou seja, a pessoa ainda não consumou o delito". Em contrapartida, os veículos que divulgarem os anúncios podem ser enquadrados na lei 9.434/97. "O canal de comunicação é responsável pela publicação, logo pode ser responsabilizado criminalmente."

Pena

Sobre a venda de órgãos, a Lei Federal 9.434/97 estabelece, entre outras coisas, que comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano (artigo 15) é ação passível de pena de "reclusão, de três a oito anos, e multa, de 200 a 360 dias-multa", conforme trecho da lei.

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As postagens são curtas, mas explícitas. Dezenas e dezenas de brasileiros estão colocando um de seus próprios rins à venda, em anúncios publicados na internet. Posts em blogs alheios ou no Facebook acabam se tornando uma espécie de classificados clandestinos. Além de dados pessoais do vendedor, as publicações vêm, geralmente, acompanhadas de uma história que denota desespero financeiro.

INFOGRÁFICO: Veja como funciona o comércio de rins no mercado negro

Pelo esquema, os órgãos são retirados em países como África do Sul e Índia e vão abastecer um mercado negro rentável. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a venda ilegal de órgãos movimenta algo entre US$ 600 milhões e US$ 1,2 bilhões a cada ano. A entidade estima que 10% dos 66 mil rins transplantados anualmente no mundo tenham sido comprados clandestinamente.

Os preços pedidos por quem quer comercializar um rim variam de acordo com a necessidade de cada um. As ofertas partem de R$ 50 mil e chegam a passar de R$ 1 milhão. Alguns mencionam uma "tabela internacional", segundo a qual o órgão estaria avaliado em US$ 260 mil.

As motivações de quem põe um de seus rins à venda também são diversas. O curitibano Mário (nome fictício), de 32 anos, por exemplo, colocou a própria saúde em risco para tentar salvar a saúde financeira de sua empresa – uma pequena construtora. Menos de um mês depois de ter feito o anúncio no campo de comentários de um blog, recebeu propostas de quatro compradores: dois da Índia e dois dos Estados Unidos.

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"Minha empresa estava indo mal das pernas. Eu precisava de dinheiro para levantar o negócio. Por isso, fiz o anúncio", conta Mário, sem qualquer constrangimento. Ele chegou a assinar um pré-contrato – mal traduzido para o português – e a enviar seus documentos para os compradores. Venderia um rim por US$ 150 mil, mas a transação não foi adiante, porque a clínica dos EUA queria que ele arcasse com os custos dos exames pré-operatórios.

Clínicas

Como os procedimentos para transplantes no Brasil são extremamente rigorosos e a compra e venda de órgãos no país é considerada crime, as cirurgias para remoção dos rins adquiridos no mercado negro não são feitas aqui. África do Sul, Índia, EUA, Israel e países do Leste Europeu são apontados por fontes da Polícia Federal como os principais pontos onde as operações são feitas. Os vendedores recebem parte do dinheiro antes da operação e o restante, após o órgão ter sido retirado.

Também na internet, multiplicam-se anúncios de hospitais estrangeiros, interessados em adquirir órgãos. A reportagem enviou e-mail a dois deles, pedindo informações sobre o procedimento. Em ambos os casos, em menos de duas horas, recebeu um cadastro, acompanhado de uma saudação. "Meu nome é Doutor Lukman, eu sou dono do hospital acima, eu quero que você saiba que você é no lugar certo onde você pode vender seu rim [sic]", consta do texto do Irrua Specialist Hospital.

Demanda segue avançando

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Enquanto os anúncios de venda de rim proliferam na internet, a demanda pelo órgão avança. Apesar de ser o segundo país em número de transplantes, o Brasil tem hoje uma fila de espera de 11,4 mil pessoas (1,6 mil no Paraná) que aguardam por um rim, segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Ano passado, 5,4 mil transplantes foram feitos.

Essa necessidade ajuda a manter o mercado negro. "Preciso de um rim fator sanguíneo A+, estou em São Paulo, se alguém quiser doar ou conhecer alguém, favor entrar em contato", diz uma postagem. Apesar disso, as exigências legais tornam quase impossível a retirada de rins "comprados" em hospitais brasileiros. Os transplantes em que o doador não é parente do receptor só ocorrem após autorização judicial e avaliação de uma comissão de ética intra-hospitalar.

"A lei brasileira pa­­ra transplantes é uma das mais avançadas do mundo. É impossível burlar", diz o nefrologista Lúcio Requião Moura, diretor da Sociedade Brasileria de Nefrologia. "Hospitais do exterior que se submetem a fazer esses transplantes clandestinos não têm o rigor médico capaz de assegurar a vida do paciente", completa. O consultor Ale­­xander Berger defende a legalização da venda de rins. Ele aponta que, regulamentada pelo governo, a comercialização implicaria em economia ao Estado, já que o custo de um transplante é menor do que o de sessões de diálise.

Colaborou Simon Benoit-Guyod

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