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Cloroquina em Manaus: mais duas famílias de pacientes que morreram denunciam superdosagem

Pesquisa, realizada entre abril e março de 2020, contou com a participação de 81 pacientes internados em estado grave no Hospital Delphina Aziz, de Manaus. (Foto: Reprodução)

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Depois que a Gazeta do Povo publicou uma reportagem exclusiva com denúncias de famílias de duas pessoas que morreram ao participar de estudo em Manaus (AM) em que, supostamente, houve superdosagem de cloroquina, parentes de outros dois falecidos entraram em contato para endossar as acusações e contar mais detalhes sobre o caso.

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A pesquisa, realizada entre abril e março de 2020, teve a participação de 81 pacientes internados em estado grave no Hospital Delphina Aziz, de Manaus, referência para atender casos da Covid-19 na capital do Amazonas. Participaram da iniciativa uma equipe de aproximadamente 70 profissionais, entre médicos, enfermeiros, farmacêuticos e alunos de pós-graduação, vinculados a instituições como a Fiocruz, Fundação de Medicina Tropical do Amazonas Dr. Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD), Universidade do Estado do Amazonas (UEA), entre outras.

Os novos relatos reforçam a opinião das primeiras famílias denunciantes: de que a equipe de pesquisadores teria cometido irregularidades. As esposas de dois homens que tomaram cloroquina contam que não receberam quaisquer informações da equipe que realizava a pesquisa. As duas, que têm formação na área de saúde, uma é biomédica e a outra enfermeira de UTI, avaliam que, de fato, ocorreu uma intoxicação por superdosagem medicamentosa. Ambos receberam a dose alta de cloroquina e morreram após paradas cardíacas.

As duas se dizem inconformadas por terem perdido os seus maridos de forma tão abrupta. Em conjunto com outras famílias de pacientes que participaram do estudo, elas criaram um grupo de apoio.

A Gazeta do Povo também conversou com a esposa de mais um paciente que morreu no estudo - a quinta família localizado pela reportagem -, mas ela voltou atrás e pediu para não ter o seu caso relatado na matéria, por medo de ser reconhecida e sofrer represálias.

Coronel Péricles Ferreira de Lima

O tenente-coronel do Exército Péricles Ferreira de Lima, 46 anos, morreu após participar do estudo. A esposa dele, Franceline de Quadros de Lima, 40 anos, conta que o coronel ficou 11 dias internado no Hospital Delphina Aziz e faleceu em 7 de abril de 2020.

Em 19 de março, Lima foi a Manaus com a família para fazer exames para a realização de cirurgia bariátrica, pois ele era obeso. Com as restrições devido à Covid-19, porém, o hospital onde seria realizado o exame foi fechado. Enquanto estava na cidade, ele começou a se sentir mal, mas ainda não sabia o que era. Como tinha asma, pensou que se tratava de mais uma crise.

A família do coronel foi para João Pessoa, na Paraíba, mas ele ficou no Amazonas. Como não iria fazer a cirurgia, teria que voltar ao trabalho em São Gabriel da Cachoeira, cidade que fica a 850 quilômetros de Manaus, onde ele servia há dois anos.

Mas a suposta crise de asma não passava. Sentindo cada vez mais falta de ar, Lima foi a um hospital militar em 26 de março, onde fez uma tomografia. Depois, foi enviado para o Hospital Delphina Aziz, em Manaus, referência no atendimento a pacientes com Covid-19, no qual foi internado no dia 27.

Na sequência, ele foi levado para a UTI. Nesse período, Franceline conta que recebeu uma ligação do grupo de pesquisa, para que ela autorizasse que o marido participasse de um estudo para testar a cloroquina. Ela afirma que recebeu poucas informações sobre esse levantamento e que a cloroquina já tinha sido prescrita para Lima antes mesmo de a família assinar a autorização.

“Ainda estávamos no começo da pandemia e diziam que com a cloroquina ele poderia melhorar. Se você está com seu marido ou um filho nessa situação e falam que vão aplicar uma injeção que pode fazer melhorar, a gente confia. Mas não foi dada nenhuma explicação sobre o risco. Falaram para o meu irmão que era uma droga nova que estavam testando. Ele já teve malária duas vezes, já tinha tomado hidroxicloroquina, só que não em dosagens altas. Não tive explicação de como seria feito o estudo”, afirmou

Segundo ela, um enfermeiro informava sobre o estado do marido e enviava as fichas médicas com a dosagem da medicação e os exames. Esse funcionário teria dito à esposa do coronel - que também é enfermeira - que a dosagem dada a Lima foi de 600 mg de cloroquina de 12 em 12 horas. De acordo com essas informações, Lima participou do estudo tomando a dose alta da medicação, denunciada posteriormente por ser uma superdose e que teria potencial de matar os pacientes intoxicados.

Lima foi intubado em 31 de março de 2020 e apresentou melhora no dia seguinte. O enfermeiro contou que a equipe estava até pensando em retirar o tubo de respiração.  O coronel, porém, piorou no dia seguinte e começou a ter forte taquicardia. Diante disso, a equipe médica teria dado remédio para taquicardia.

“Na sexta-feira, começou a [apresentar piora da] função renal. Pareciam sintomas de intoxicação: taquicardia, falha nos rins. Eu nunca esqueço que chegou uma informação dizendo que estavam começando a aparecer petéquias [manchas] pelo corpo, e eu indagava ao enfermeiro por que meu marido estava apresentando esse tipo de coisa pelo corpo? E não sabiam me responder. Isso tudo era característica de intoxicação”, afirmou Franceline.

A taquicardia não diminuía e isso também preocupava a família. A esposa conta que teve acesso a uma radiografia do pulmão de Lima e enviou a um pneumologista. O médico especialista explicou que o corpo estava muito sobrecarregado, com batimento de 170 que não baixava. Mesmo com o problema, a esposa do coronel afirma que a equipe de pesquisadores manteve a dosagem alta dos comprimidos de cloroquina.

Em 5 de abril de 2020, um médico amigo da família foi até o hospital para obter informações sobre a situação de Lima, pois os familiares não recebiam atualizações sobre a saúde do coronel. Segundo Franceline, boletins médicos chegaram a informar que havia 50 pacientes internados e “eles não tinham como ficar se preocupando com cada um”.

“Ele [o médico amigo da família] me ligou dizendo que a situação era muito difícil. Disse que não sabia o que estava acontecendo e que ainda estava sendo ministrada a cloroquina, mesmo com esses sintomas. A febre não cedia, os antibióticos não faziam mais efeito, a taquicardia não baixava, estava fazendo hemodiálise e nada funcionava. Ou seja, ele estava intoxicado, mas eles não admitiram isso de forma alguma”, afirmou a esposa de Lima.

Ela decidiu ir para Manaus, mas quando ainda estava no caminho, em 7 de abril, recebeu a notícia de que o marido tinha sofrido duas paradas cardíacas e morrido. Dias depois, o corpo de Lima foi cremado em Manaus em uma pequena cerimônia.

Pouco tempo depois, surgiram os rumores de que havia superdosagem medicamentosa, mas ela conta que a família decidiu não tomar nenhuma atitude. Ela diz se sentir culpada por achar que pode ter contribuído para o que aconteceu e que tudo poderia ter sido diferente se não tivesse assinado a autorização.

Três meses depois da morte de Lima, Franceline conta que recebeu uma ligação do médico Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda, pesquisador da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado que coordenou o estudo, com o objetivo de explicar que a equipe não havia ministrado superdosagem aos pacientes. Segundo ela, Lacerda negou que houve superdosagem ou intoxicação e afirmou que a causa da morte era a comorbidade do coronel.

“Eu sabia que meu marido já tinha problemas de saúde, tinha sobrepeso e asma crônica. Mas não é assim que funciona, não é porque você está doente que eu vou terminar de jogar terra em cima de você. Não era esse o caso. Então ele tentou justificar de uma forma mostrando que meu marido já tinha comorbidade. Ele poderia ter ido, mas se você está indo e a pessoa dá um veneno pra você, você vai mais rápido”,afirmou a esposa do coronel.

Ela lembra que se deu conta do que havia acontecido com a repercussão da reportagem da Gazeta do Povo no programa “Os Pingos nos Is”, da Jovem Pan. “Eu sei que ele morreu por conta dessa pesquisa. Não quero levar para o lado de ‘ah, mataram meu marido!’ É difícil acreditar que um médico quis fazer isso. Não sei quais foram os propósitos, se ele estava testando mesmo. Mas também não consigo entender por que ele não parou nos primeiros sinais de intoxicação. Aos primeiros sinais de intoxicação, é preciso analisar tudo. Por que a taquicardia não baixava?”, disse Franceline.

Diante de tudo o que ocorreu, Franceline afirmou que desenvolveu hipertensão e que ainda faz tratamento psicológico para enfrentar o luto. Sem o marido, ela agora segue em frente em razão dos dois filhos.

Marcos Bruno Cecílio

O empresário amazonense Marcos Bruno Cecílio, 39 anos, deu entrada na UTI do Hospital Delphina Aziz em 1º de abril de 2020 com sintomas de Covid-19. Cecílio também participou do estudo de cloroquina e faleceu em 15 de abril. A servidora pública Lessandra Rufino, de 43 anos, relembra com muita tristeza a perda do marido. Ela conta que ele começou a passar mal e teve diarreia. Foi para o pronto-socorro Danilo Correia, na zona Norte de Manaus, e foi diagnosticado com infecção intestinal. Naquela época, a diarreia ainda não era relacionada com Covid-19. Ela insistiu para que o médico solicitasse o exame para diagnosticar a doença, que só era feito no sistema público. Mas ele não conseguiu fazê-lo.

Cecílio foi piorando e tinha muita falta de ar. Isso a fez pensar que ele realmente estava infectado. Embora ele não quisesse ir ao hospital, ela conseguiu convencê-lo e o levou para o Hospital Delphina Aziz, em 1º de abril. Após uma tomografia, o empresário foi internado e no terceiro dia teve de ser intubado.

Ela afirma que em uma das visitas ao hospital, quando foi buscar o boletim médico, uma equipe pediu autorização para a participação de Cecílio em um estudo sobre cloroquina. Ela conta que assinou no corredor do hospital e imaginava que poderia ser a salvação do seu marido. Mas ela também ressalta que não recebeu explicação alguma sobre os riscos do estudo.

“Eu assinei sem pensar mesmo, no desespero. Ele me falou que tinha tomado cloroquina e eu agradeci a Deus. Perguntei qual foi a quantidade, ele me disse que foram quatro pílulas. No outro dia ele foi intubado, onde ficou por mais ou menos uns dez ou 12 dias e depois veio a falecer”, disse.

Pelas informações repassadas pelo paciente, ele fez parte do grupo que recebeu a dosagem alta de cloroquina, pois teria tomado quatro comprimidos de cloroquina de 300 mg, totalizando 1.200 mg por dia. A quantidade foi apontada posteriormente como uma superdosagem de cloroquina.

Cecílio teve parada cardíaca e não resistiu. Foram 11 tentativas de reanimação sem sucesso.

Formada em biomedicina, Lessandra afirma que conseguia sentir a falta de experiência e nervosismo da equipe. De acordo com ela, outro problema era o fato de que o médico Marcus Lacerda, que coordenou o estudo, não teve contato com os pacientes.

Ela relata que a filha do casal, de 6 anos, está com problemas de saúde e faz tratamento psicológico para tentar superar a perda do pai. “Minha filha hoje frequenta o psicólogo, porque chora noite e dia. É muito triste perder o pai dessa forma. Ela praticamente não anda, desenvolveu problemas nos pés por causa da glicose e não dorme à noite por falta do pai. A pior luta de todas é a psicológica. É duríssimo, ela olha tudo, chora, fica gelada e com o coração acelerado. Mudei até de casa por isso. Já tentei fazer de tudo, mas não adianta. Tem um ano e meio e não melhora, pelo contrário. O legado que essa história deixou é muito cruel”, disse.

O que dizem os envolvidos

A reportagem entrou em contato com a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), que autorizou e acompanhou o estudo, e por meio de nota, a resposta foi de que os dados do estudo estão sob sigilo.

“Todos os dados dos protocolos de pesquisa em análise estão sob sigilo, em razão do compromisso de confidencialidade, respeito à proteção da individualidade, observância aos direitos e obrigações relativos à propriedade industrial (Lei nº 9.279/1996) e em cumprimento ao §1º do art. 13 e artigo 11, Resolução CNS nº 446/2011; item X.1, 3, a, Resolução CNS nº 466/2012 e item 2.1 da Norma Operacional CNS n° 001/2013”, diz a nota.

O Grupo de Atuação Especial de Investigação do Ministério Público do Estado do Amazonas (GAECO/MPAM), que inicialmente apurou as responsabilidades pelas mortes, informou que - como o fato não se caracteriza como crime organizado - atuou no apoio à investigação, cujo titular é a 10ª Promotoria Criminal de Manaus. Dessa forma, o Gaeco enviou o relatório à promotoria titular, que irá dar encaminhamento de providências.

Mais uma vez, a assessoria do médico Marcus Lacerda disse que ele não iria responder aos questionamentos da reportagem e que todos os esclarecimentos estão sendo feitos ao órgão competente.

A Universidade do Estado do Amazonas e a Fundação de Medicina Tropical não deram retorno até a publicação da matéria.

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