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Cloroquina em Manaus: parentes de 2 pacientes que morreram denunciam superdosagem

Estudo sobre cloroquina foi realizado em Manaus
Estudo sobre cloroquina foi realizado em Manaus. Imagem ilustrativa (Foto: AEN)

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Familiares de dois pacientes que morreram após passar por um estudo para testar a eficácia da cloroquina - realizado em Manaus (AM) com a participação de mais de 70 pesquisadores de diversas instituições e universidades - denunciam a equipe por suposta tentativa de fraude nos resultados do estudo. Segundo eles, os pesquisadores teriam tentado fazer parecer que pacientes tomaram uma dose baixa do remédio, quando, na verdade, teriam tomado uma dose maior, o que os teria levado à morte. A denúncia é reforçada por depoimentos de médicos que acusam a equipe de aplicar uma superdosagem fatal de cloroquina nos pacientes.

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Ambas foram enviadas ao Grupo de Atuação Especial de Investigação do Ministério Público do Estado do Amazonas (MP-AM), que está realizando um Procedimento Investigatório Criminal para investigar o estudo.

Durante o ano que se seguiu, os nomes dos 22 pacientes que morreram durante o estudo e seus familiares ficaram em anonimato, por questões éticas e legais relacionadas a esse tipo de pesquisa, que deve ser sigilosa. E foi o que Conep, Ministério da Saúde e MP de Bento Gonçalves alegaram quando a Gazeta do Povo solicitou as informações.

Entretanto, por meio de um cruzamento de dados de mortes de pessoas infectadas com Covid-19 com a data e o local em que estudo foi realizado, a reportagem conseguiu encontrar e falar com familiares de duas pessoas que participaram do experimento e morreram. Eles acreditam que a superdosagem foi responsável pela morte de seus familiares e denunciam uma possível tentativa de fraude dos pesquisadores.

O músico amazonense Robson de Souza Lopes, de 43 anos, conhecido como Binho, foi internado no dia 20 de março de 2020 e ficou 10 dias no Hospital Delphina Aziz, local onde estava sendo realizado o estudo Clorocovid. Binho foi o segundo a morrer no estado do Amazonas em decorrência de infecção por Covid-19.

A esposa de Binho preferiu não se pronunciar porque ainda se encontra muito abalada pela morte do marido, mas Lucia Noronha Azevedo, de 47 anos, cunhada de Binho, e que acompanhou toda a internação, conta que desde o primeiro dia ele ficou intubado. Lucia afirma que Binho não tinha comorbidades, era saudável e que em nenhum dia passou mal. Ela explica que Binho tomou a dose mais alta de cloroquina e que, para ela, foi isso que o levou ao óbito.

“Dia 27 falei com ele no leito, ele estava intubado. Porém, pedi para ele mexer a cabeça se estivesse ouvindo, e ele mexeu. Aí não acreditei. Pedi para mexer os pés, ele mexeu os dois. Eu orei e cantei com ele e ele começou a chorar”, lamenta.

Três dias depois, a família recebeu a notícia de que ele estava reagindo bem aos medicamentos e que seria o primeiro a receber alta. Mas, no final do mesmo dia, 30 de março, veio a notícia de que ele havia falecido, deixando a família em choque.

Lucia conta que, no dia da internação de Binho, a esposa dele assinou um documento com autorização para participar do estudo, mas depois do falecimento solicitaram que outra autorização fosse assinada. “Eles foram na minha irmã para ela assinar outro protocolo, dizendo que ele tinha recebido a dose menor. Ela não assinou”, salienta.

Entretanto, a ficha médica de Binho fornecida pela família à reportagem mostra claramente que ele foi participante do grupo que foi medicado com a dose maior de cloroquina.

Outro a morrer após participar do estudo foi o agricultor Ozaniel Almeida Rosa, de 55 anos, morador de Manaus, mesmo tendo dois resultados negativos em testes para Covid-19, segundo a família. Primeiro indígena a morrer devido à Covid-19 no Amazonas - segundo do Brasil -, Almeida Rosa foi internado em 23 de março e morreu no dia 5 de abril. A família acusa o estudo de negligência e de ter apenas recebido pedido autorização para que ele participasse dias após a morte.

A esposa de Almeida Rosa, a servidora pública Norma Maria Cunha, de 57 anos, contou que ele estava bem quando chegou no hospital e que era saudável. Mas, quando ele deu entrada na unidade hospitalar, após ser realizada uma tomografia que acusou uma tuberculose, a equipe médica solicitou que ele ficasse em observação. Isso espantou Norma pois, para ela, Almeida Rosa poderia realizar o tratamento em casa. No entanto, os médicos insistiram para que ele ficasse um pouco mais para maior avaliação. Almeida Rosa e sua esposa não sabiam, mas ele nunca mais voltaria para casa.

Emocionada, Norma fala da última vez que conseguiu falar com o esposo. “Ele havia esquecido o celular em casa e me pediu para buscá-lo. Disse que iria ficar me aguardando na recepção. A gente se abraçou na despedida”.

Na volta, Norma descobriu que não poderia mais ver nem falar com ele, pois não era permitida a entrada de celular. O contato com o marido foi ficando cada vez mais difícil depois que ele foi para a chamada “Sala Rosa”. Essa sala era onde ficavam em observação os pacientes infectados com Covid. Para a esposa, foi ali que Almeida Rosa contraiu o vírus. Nesse momento ela conta que lhe informaram que ele havia sido escolhido para participar de um estudo sobre cloroquina, mas conta que em nenhum momento pediram a autorização da sua família.

Norma, que é profissional da área de saúde, conta que ficou desconfiada do procedimento que foi realizado, pois não lhe davam notícias sobre o estado do marido e chegaram a tratá-la mal durante a sua busca por informações.

No terceiro dia, Norma, sentindo um mal-estar, foi realizar exames no hospital, pois ela suspeita que poderia também estar com tuberculose por causa do contato que teve com Almeida Rosa. Desse modo, conseguiu ver de relance o marido, mas, quando tentou se aproximar, os seguranças não a deixaram entrar.

Após algumas horas, ela diz que recebeu a notícia de que ele havia sido transferido para a UTI e estava intubado. A justificativa dada pelo médico era que Almeida Rosa passou mal e não reagiu bem à medicação. Norma ficou indignada, pois tinha conversado com ele no dia anterior e o visto horas antes na observação. O marido passou 13 dias intubado. A esposa afirma que durante esse tempo os médicos tentaram retirar o tubo de respiração para fazer uma 'experiência', mas tiveram que recolocá-lo em seguida.

“Eu trabalho na área de saúde e sei que uma pessoa intubada duas vezes não pode resistir. Porque você vai ferir a garganta da pessoa”, Norma se dirigiu indignada para o médico. Nesse momento ela conta que entrou em desespero.

Na sequência, Norma adoeceu e teve que ficar isolada em casa. Nesse período, recebeu a notícia de que o marido havia falecido por meio do filho, Maycon Jhonny Cunha Carvalho, de 38 anos, que acompanhou de perto a internação de Almeida Rosa enquanto sua mãe estava internada.

Carvalho também conta que, dias depois da morte de Almeida Rosa, uma equipe de enfermeiros foi até a casa de sua mãe para pedir autorização para que ele participasse do estudo. Ele explica que se recusaram a assinar, pois não tinham autorizado nem sido consultados.

Para Carvalho, Almeida Rosa não estava infectado com Covid quando chegou ao hospital, mas com tuberculose, e que isso, aliada à superdosagem de cloroquina, foi o que levou o pai a óbito. Carvalho conta que até hoje não conseguiu ter acesso à ficha médica e que planeja uma ação judicial.

“Ele não estava com essa porcaria aí. Fizeram aplicação de remédio sem necessidade, de uma doença que ele não estava sofrendo, era de outra”, disse.

Segundo Amanda Costa, advogada especialista em Direito Médico e Direito Penal, os pacientes que participam de pesquisa devem fornecer termo de consentimento após receberem claras informações sobre os riscos físicos, psicológicos e sociais que podem ocorrer ao aceitarem participar do experimento, que deve estar cercado de garantias éticas e científicas.

Porém, uma pesquisa realizada em desconformidade ética pode levar os responsáveis a responder no tribunal de ética, civilmente e até criminalmente.

“O tribunal de ética atua através de uma denúncia, que não pode ser anônima, onde é instaurada uma sindicância para investigar se os atos do médico foram contra a ética e princípios médicos. Na justiça comum, podem responder por homicídio na forma culposa por imprudência, por exemplo, com 1 a 3 anos de detenção, conforme o artigo 121 do código penal”, disse.

De esperança a contestações

No início de 2020, a cloroquina se tornou a grande promessa no combate à Covid-19, após estudos preliminares como o publicado pelo médico francês Didier Raoult e a indicação do presidente americano Donald Trump da suposta eficácia. No Brasil, o medicamento foi recebido com grande entusiasmo por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro.

Porém, essa esperança não foi confirmada. O medicamento, que já é conhecido há quase um século e utilizado com sucesso para o tratamento de malária e lúpus, teve sua eficácia questionada e, até agora, não há estudos definitivos sobre o tema, apenas pesquisas que mostram benefícios do uso de um coquetel de medicamentos nas primeiras fases da doença. Um dos primeiros estudos a tentar comprovar algo sobre o uso da cloroquina contra a Covid-19 foi o chamado Clorocovid, realizado em Manaus, em abril de 2020.

Composto por uma equipe multidisciplinar de mais de 70 pesquisadores de diversas instituições e universidades, como a Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, a Universidade do Estado do Amazonas e a Universidade de São Paulo, o estudo tinha o objetivo de testar a eficácia de diferentes dosagens de cloroquina no tratamento do Covid-19.

A razão para ser realizado na capital amazonense foi a sua longa experiência com cloroquina no combate à malária, cujo tratamento é feito com esse remédio.

A proposta do estudo foi enviada no dia 20 de março de 2020 à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e aprovada em tempo célere: em apenas três dias a equipe analisou e aprovou a realização – no mesmo dia da aprovação foi iniciada a distribuição dos remédios para os pacientes. O estudo contou com a participação de 81 pacientes internados em estado grave no Hospital Delphina Aziz, de Manaus, hospital referência para atender os casos do Covid-19 na cidade.

Os pacientes foram divididos em dois grupos. No primeiro, 41 pessoas receberam uma dose alta do remédio (600 mg 2x/dia durante 10 dias), muito acima do limite indicado na bula (máximo de 1.500 mg em 3 dias) e no segundo, 40 receberam uma dose menor, mas também excedente ao indicado (450 mg, duas vezes ao dia, no primeiro dia e 450 mg dose única por mais 4 dias, totalizando 5 dias de tratamento).

A intenção era comparar a reação à dose alta de cloroquina, utilizando como controle a dose baixa com a justificativa de que seria antiético não fornecer a medicação para um grupo de controle. Na ocasião, o Ministério da Saúde, junto à Secretaria de Ciência e Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCETIE), recomendou a dose baixa para o tratamento de pacientes com quadro clínico grave.

Para participar do estudo, os pacientes ou seus familiares deveriam assinar termos de autorização livre e esclarecida, por meio dos quais permitiriam que os pesquisadores dessem a medicação e coletassem dados para a pesquisa após explicação clara sobre os riscos do estudo.

O início das mortes em estudo com cloroquina

Pacientes começaram a morrer após o início da aplicação do medicamento. Assim, a equipe decidiu suspender a aplicação da dosagem alta, segundo eles, no 13º dia, aplicando a todos os participantes do estudo apenas a dose mais baixa. No total, morreram 16 pessoas que receberam a dose alta e 6 que receberam a dose menor.

O médico e pesquisador Marcus Vinícius Guimarães Lacerda, da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, e especialista em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz Amazonas (Fiocruz - AM), que liderou o estudo, foi acusado, sem provas, nas redes sociais de ter matado intencionalmente com doses altas de cloroquina.

Inquéritos foram abertos pelo Ministério Público (MP) de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, e pelo Ministério Público Federal (MPF) do Amazonas, para apurar se houve negligência ou superdosagem medicamentosa que teriam causado as mortes dos pacientes. Além disso, o estudo foi alvo de procedimento do Conep.

Porém, mesmo com investigações em andamento, diversas instituições passaram a fazer uma campanha de defesa do estudo e do líder do grupo, Lacerda. Os inquéritos e investigações foram arquivados após apurações que seguiram em sigilo.

Em entrevista concedida à Gazeta do Povo em 16/04/2020, Lacerda disse que a equipe seguiu a dosagem do “consenso chinês”, que também fez testes com o medicamento, e que se alguém deveria ser chamado de criminoso seriam os chineses, pois foram eles que começaram a utilizar essa dose. Há pesquisas da década de 1980 que confirmam que ultrapassar as medidas previstas de cloroquina na bula resulta em intoxicação grave, mas o médico disse que era necessário testar se o mesmo ocorria em caso de pacientes com Covid-19.

Médicos questionam o estudo com cloroquina na CPI do Covid

Mais de um ano após o fim do estudo, Lacerda tem novamente os holofotes voltados para si por causa da CPI do Covid, criada para apurar irregularidades na condução da pandemia no Brasil. Em 17 de maio, o senador Luis Carlos Heinze (PP-RS) enviou solicitação à Polícia Federal propondo investigação sobre uma suposta superdosagem do estudo Clorocovid.

Cerca de um mês depois, os médicos infectologistas Francisco Cardoso e Ricardo Zimmermann foram convidados por Heinze a dar esclarecimentos na CPI da Covid sobre os medicamentos do chamado “tratamento precoce”. Cardoso disse que a questão fundamental para as mortes no estudo foi uma superdosagem causada por uma confusão entre as formulações do medicamento utilizado no estudo chinês, citado pelo médico Marcus Lacerda como sua principal referência, e o brasileiro, fabricado pelo Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fiocruz (Farmanguinhos).

Cardoso explicou que a equipe de pesquisadores do Clorocovid errou na hora de replicar o estudo chinês, cuja cloroquina possui comprimidos de 500 mg de fosfato de cloroquina, equivalente a cerca de 300 mg de cloroquina pura; enquanto o comprimido brasileiro possui 241 mg de difosfato de cloroquina, mesma coisa de fosfato, e equivalente a 150 mg de cloroquina pura. Porém, a equipe teria se confundido ao ler a bula do remédio brasileiro, que seria cloroquina pura e não fosfato, dando na prática, o dobro da dose do estudo chinês.

“No estudo de Manaus eles deram 1200 de mg de cloroquina base, calculado em fosfato, dá cerca de 2.000 mg por dia para os pacientes. A própria bula da cloroquina fala que deve-se evitar dar mais de 1500 mg em três dias seguidos.  Eles deram para esses pacientes 3.600 mg de cloroquina em três dias. Sete pacientes morreram nestes 3 dias”, disse, alertando para não se deve confundir cloroquina com a hidroxicloroquina, que possui dosagem diferente e margem de segurança melhor.

Cardoso afirmou que, como o estudo era randomizado, ambos os grupos tinham o mesmo grau de risco e, em tese, deveriam ter a mesma taxa de mortalidade. Porém, o grupo que recebeu a dosagem maior de cloroquina teve quase 3 vezes mais mortes do que o grupo que tomou a dose menor. Para ele, o estudo foi uma tragédia e “uma vergonha para a ciência nacional”.

Agora, o MP do estado do Amazonas está conduzindo um procedimento investigativo para definir as responsabilidades das mortes durante o estudo CloroCovid. Entretanto, segundo nota enviada pelo MP à Gazeta do Povo, a investigação corre sob sigilo legal.

A reportagem conversou com o médico amazonense Mário Vianna, presidente do Sindicato dos Médicos do Amazonas (Simeam), convidado pelo MP-AM a explicar o pedido de providências feito por ele, em maio de 2020, ao Conselho Regional de Medicina do Amazonas para apurar as responsabilidades sobre a pesquisa, que para ele era “obscura”.

“O motivo da minha denúncia foi o absurdo de se utilizar doses tão elevadas para o tratamento dos pacientes selecionados. E também o critério de seleção dos pacientes, que só respeitou a idade ser acima de 18 anos. Não foram retiradas pessoas com sabida cardiopatia e até mesmo, segundo informações, gestantes”, disse.

Além disso, uma peça-chave surge para responder algumas perguntas: os relatos de familiares das vítimas, que acusam os pesquisadores de fraudar o estudo.

O que dizem os envolvidos no estudo com a cloroquina

A assessoria de Marcus Lacerda informou que o médico não irá se manifestar. “O inquérito em questão encontra-se judicializado e todos os esclarecimentos estão sendo feitos ao órgão competente”, informou.

Em nota, a Universidade do Estado do Amazonas (UEA) disse que foi uma das instituições colaboradoras do estudo Clorocovid-19, por meio de docentes e discentes do Programa de Pós-graduação em Medicina Tropical (PPGMT). E que o protocolo de pesquisa teve a anuência da universidade, seguiu as normas éticas vigentes no Brasil e recebeu a devida aprovação do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).

“A UEA ressalta ainda que os procedimentos de apuração sobre o estudo foram conduzidos por meio do Conep, Ministério Público Federal (MPF) e Conselho Federal de Medicina (CFM), foram arquivados por ausência de materialidade”, afirmou.

O coordenador do Conep, Jorge Alves de Almeida Venâncio, disse que a equipe do Conselho de Ética apurou minuciosamente as mortes dos pacientes, e que tanto o Comitê Independente de Monitoramento de Segurança e Dados, que acompanhava remotamente a pesquisa e era composto por cinco professores de universidades diferentes – que após a morte dos pacientes pediu a paralisação da dose maior e pediu o encerramento do estudo –, quanto o Conep não constataram relação dos óbitos com a medicação.

Entretanto, ele conta que houve apenas uma notificação enviada à Anvisa de um problema de boas práticas em pesquisa; um descontrole, segundo ele, na quantidade de medicação ministrada aos pacientes. Venâncio, porém, afirma que sua equipe não constatou que esse problema poderia causar riscos aos pacientes, e que apenas poderia atrapalhar nos resultados da pesquisa.

“Em processo de pesquisa clínica você tem que ter: a prescrição, a dispensação da farmácia e o relato da enfermagem com a dose que foi dada efetivamente. Em alguns casos houve lacunas na medicação que estava prevista. Teve casos em que a dose foi menor do que estava prevista originalmente. Dose a mais não houve nenhum caso. Esse fato nós reportamos à Anvisa, para que ela apurasse, porque é um caso de boas práticas clínicas e quem cuida disso é a Anvisa”, disse, acrescentando que, em caso de irregularidades, deveria ser enviada representação ao MP, que tem o poder de fazer investigação criminal.

Venâncio também disse que a questão da diferença da medicação brasileira e chinesa, informada pelo médico Francisco Cardoso na CPI, não foi considerada pelo Conep em suas análises e que ouviu a primeira vez sobre a questão ao falar com a reportagem. Entretanto, ele nos disse que a afirmação de Cardoso não procede, pois os medicamentos fosfato de cloroquina e difosfato de cloroquina são a mesma coisa.

Sobre essa questão, Francisco Cardoso reforçou o que havia dito e informou que de fato os dois medicamentos são a mesma coisa, mas a diferença é que a apresentação do comprimido na China é 500 mg de fosfato, que equivale a 300 mg de cloroquina base. No Brasil, o comprimido tem 241 mg de fosfato de cloroquina, ou difosfato, o que equivale a 150 mg de base.

“Aqui no Brasil o que é anunciado na capa do comprimido são os 150 mg de cloroquina pura, que seria a base, e não os 241 mg de fosfato de cloroquina. A base é a molécula da cloroquina propriamente dita e o sal é essa molécula trabalhada, como ela se apresenta em sua fórmula química”.

“É como se fosse uma laranja pesando 200 gramas, mas que tem 100 ml de suco. O suco é o que importa, o resto é o bagaço. Exemplificando de forma primária para que se entenda a diferença”, disse.

Para ele, o Conep sempre soube desta questão e agora está tentando “passar pano”. Além disso, ele disse que o médico Marcus Lacerda não pode alegar desconhecimento, porque a equivalência se encontra escrita no seu artigo. Para Cardoso, esse caso prova que há grave falha no sistema de controle e gerenciamento ético de pesquisa no Brasil.

O Grupo de Atuação Especial de Investigação do Ministério Público do Estado do Amazonas (Gaeco/MPAM) enviou nota informando que há um procedimento investigativo para apurar as circunstâncias de Eventos Adversos Graves (EAG) ocorridos durante pesquisa de eficácia e segurança do uso da Cloroquina em pacientes com Covid-19, realizado no Hospital Delphina Aziz, na Cidade de Manaus em março de 2020.

“A investigação corre sob sigilo legal, em decorrência de informações que pela sua própria natureza tem previsão legal de proteção de dados, cabendo ao órgão de investigação respeitar por dever funcional. Em razão do sigilo, não é possível informar o conteúdo de diligências em andamento ou a serem realizadas, nos moldes de entendimento consagrado na jurisprudência nacional, inclusive sumulada no Supremo Tribunal Federal”, disse o MP.

Já a Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas informou que "o Ensaio Clínico Clorocovid-19, realizado com Difosfato de Cloroquina no Hospital de Referência à Covid-19 Delphina Aziz, seguiu todos os padrões éticos e científicos, tendo obtido aprovação e autorização da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP)".

De acordo com a secretaria, "o estudo contou com a participação de cerca de 70 profissionais, entre médicos, enfermeiros, farmacêuticos e alunos de pós-graduação, de instituições renomadas em pesquisa, a exemplo da Fiocruz Amazônia, da Fundação de Medicina Tropical do Amazonas Dr. Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD), da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), e do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), entre outros, além de profissionais do próprio hospital onde o estudo foi realizado".

A pasta destacou ainda que "seus resultados foram amplamente divulgados em revistas científicas de reconhecimento internacional e todas as informações foram prestadas aos órgãos de controle, como o Ministério Público Federal (MPF) e ao órgão de classe, o Conselho Federal de Medicina (CFM)".

Com relação à Fiocruz, a reportagem solicitou que a instituição respondesse algumas questões relativas ao estudo. A instituição limitou-se a enviar uma nota. Ela, porém, apresenta imprecisões. No total, 22 pessoas que participaram do estudo morreram e não 11, conforme menciona a instituição. Além disso, ainda há inquérito em andamento no MP- AM. Leia a nota da Fiocruz:

"Todos os esclarecimentos relacionados a este estudo já foram prestados à época de sua realização. Trata-se de uma pesquisa financiada pelo Governo do Estado do Amazonas, Superintendência da Zona Franca de Manaus, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas, e fundos federais facilitados pelo Senado brasileiro.

O processo de investigação científica seguiu todos os requisitos de Boas Práticas em Pesquisa Clínica, tendo obtido a aprovação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), órgão máximo que autoriza a pesquisa em seres humanos no Brasil, vinculado ao Conselho Nacional de Saúde. O estudo seguiu rígidos protocolos de segurança e foi validado cientificamente por pesquisadores externos, tendo seus resultados publicados em uma das mais prestigiadas revistas científicas internacionais, o Journal of American Medical Association.

No que se refere ao óbito de 11 pacientes durante o estudo, sete deles faziam uso de dosagem mais alta e quatro da dosagem baixa. O óbito de todos esses pacientes ocorreu em razão de complicações associadas à Covid-19 e não estiveram relacionados às dosagens administradas na pesquisa, conforme comprovado pelos respectivos atestados de óbito. Fizeram parte do estudo apenas pacientes internados em estado grave. Destaca-se ainda que o Ministério Público Federal e o Conselho Regional de Medicina do Amazonas abriram processos, à época, com o objetivo de apurar o caso e concluíram pelo seu arquivamento, uma vez que não foram identificadas quaisquer irregularidades no estudo."

Já a Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD) informou, também por meio de nota, que "é uma das instituições executoras do projeto Clorocovid-19, com seu corpo de pesquisadores, alunos e colaboradores. Todo estudo realizado pela Fundação de Medicina Tropical Dr Heitor Vieira Dourado, antes do seu início, é aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, uma instância colegiada, deliberativa e permanente do Sistema Único de Saúde (SUS), integrante da estrutura organizacional do Ministério da Saúde. O Clorocovid1-9 não foi diferente, sua aprovação foi publicada na Edição Especial do Boletim Ética em Pesquisa do dia 23/03/2020.

O protocolo de pesquisa teve a anuência da FMT-HVD, seguiu as normas éticas vigentes no Brasil e recebeu a devida aprovação do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). A FMT-HVD ressalta que o estudo teve todo amparo das comissões responsáveis do Governo Federal e Estadual. As questões judicializadas estão a cargo do poder judiciário e todas informações foram prestadas.

Há 47 anos a FMT-HVD lida diariamente com doenças infectocontagiosas e tem seus estudos reconhecidos mundialmente. Somos referência internacional nas pesquisas e no campo acadêmico. Capacitamos e formamos pesquisadores de todo o mundo, sempre com gabarito técnico e moral de alta qualidade."

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