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Justiça

CNJ cria grupo para combater prisões injustas a partir de reconhecimento fotográfico

CNJ cria grupo para combater erros no reconhecimento fotográfico de suspeitos
De acordo com fontes ouvidas pela reportagem, população da periferia é a mais prejudicada em erros relacionados ao reconhecimento fotográfico (Foto: Luiz Silveira/CNJ)

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No dia 9 de setembro, o cientista de dados Raoni Lázaro Barbosa, de 34 anos, foi solto após ficar 22 dias preso em decorrência de um erro por parte da Polícia Civil do Rio de Janeiro ao conduzir uma operação contra integrantes de uma milícia em Duque de Caxias.

Ao efetuar a prisão, a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) se baseou apenas em uma foto de outro rapaz que teria aparência semelhante à de Barbosa. Ao confundir os dois homens, prendeu a pessoa errada. A decisão pela soltura só ocorreu após a Polícia Civil reconhecer o erro.

Quatro dias depois, o motorista Jeferson Pereira da Silva, de 29 anos, foi solto após passar seis dias preso devido a um erro semelhante. Em uma delegacia localizada em Benfica, na Zona Norte do Rio, Silva foi reconhecido como o autor de um roubo cometido em fevereiro de 2019. O único meio utilizado pela vítima para reconhecer o suposto autor do crime foi uma fotografia no tamanho 3x4cm de quando o rapaz ainda era adolescente, com 14 anos. O motorista, no entanto, nunca teve passagem pela polícia e não fazia ideia de como sua fotografia estava no banco de dados da delegacia.

Num momento em que, principalmente a partir da maior disponibilidade de fotos devido aos recursos tecnológicos e às redes sociais, multiplicam-se casos desse tipo – com fotografias sendo utilizadas como único recurso de reconhecimento para indiciar e, em alguns casos, condenar suspeitos de crimes –, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou um grupo de trabalho para elaborar diretrizes e procedimentos relacionados ao reconhecimento pessoal em processos criminais. O objetivo é aumentar a segurança na identificação de suspeitos e evitar a condenação de pessoas inocentes.

Na Portaria 209, que institui o grupo de trabalho, O CNJ afirma que “o reconhecimento pessoal equivocado tem sido uma das principais causas de erro judiciário”. Como embasamento, a portaria cita um levantamento em âmbito nacional feito pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, que aponta que em 60% dos casos de reconhecimento fotográfico equivocado em sede policial houve a decretação da prisão preventiva e, em média, o tempo de prisão para casos desse tipo foi de 281 dias (aproximadamente 9 meses).

O grupo terá 180 dias, a partir de 31 de agosto, para finalizar suas atividades que, segundo a portaria, são: estudos sobre “elementos catalisadores da condenação de inocentes no sistema de justiça criminal”; sugestão de propostas de diretrizes e procedimentos para o reconhecimento pessoal no país; e criação de uma publicação destinada ao aperfeiçoamento e à aplicação em ações de formação. Integram o grupo de trabalho juízes, desembargadores, defensores públicos, advogados, policiais e representantes de entidades da sociedade civil.

Em 2020, STJ decidiu que reconhecimento por foto não basta para condenação

Em outubro do ano passado, a 6ª turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que não é possível condenar alguém exclusivamente com base em reconhecimento por foto, e que o uso das imagens seria um procedimento antecedente ao reconhecimento pessoal. A decisão ocorreu durante julgamento que concedeu habeas corpus a um homem condenado por assalto a partir de uma fotografia.

O caso em questão ocorreu no município de Tubarão (SC). Na ocasião, testemunhas haviam relatado que o assaltante possuía em média 1,70m; o homem ao qual o delito foi atribuído - em razão de uma imagem fotográfica - tinha 1,95m. A diferença significativa no perfil do suspeito foi utilizada pela Defensoria Pública na defesa do rapaz.

No julgamento, o ministro Rogerio Schietti, que foi acompanhado pelos pares, declarou que o reconhecimento dos suspeitos deve observar o procedimento previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP), que cita as formalidades legalmente previstas para a prática. A não observação do procedimento nas delegacias, segundo o ministro, deve invalidar o reconhecimento da pessoa suspeita, ainda que seja confirmado em juízo.

Prevalece a informalidade no reconhecimento por foto, diz Defensoria Pública

O artigo do CPP citado pelo ministro determina, para casos de reconhecimento, que a pessoa que o fizer deverá previamente descrever fisicamente o suspeito que, posteriormente, será colocado (se possível, diz a norma) ao lado de outras pessoas com as quais tiver semelhança física.

Já o reconhecimento de pessoa por fotografia não possui previsão na legislação. A prática, que é comum em algumas delegacias, consiste em apresentar para a vítima ou a testemunha uma fotografia do suspeito. Em alguns casos isso é feito de forma isolada, com a foto somente de uma pessoa; em outras situações é feito em conjunto com fotos de outras pessoas, para que seja feita a identificação de quem cometeu o delito.

De acordo com um estudo da Defensoria Pública de Santa Catarina – materializado no relatório “Reconhecimento fotográfico de acusados em Santa Catarina” –, não há um padrão na condução desse tipo de procedimento por parte da Polícia Judiciária, prevalecendo a informalidade. O relatório aponta que, historicamente, os tribunais brasileiros admitem o reconhecimento fotográfico como prova atípica e cita que, em levantamento de processos julgados pela Justiça do estado após a decisão do STJ, de 2020, em 92% dos casos a pessoa reconhecida por fotografia foi, ao final, condenada criminalmente.

Para especialistas, reconhecimento fotográfico deve ser aprimorado para evitar novos erros e combater a impunidade

Conforme explica Flávio Wandeck, vice-presidente jurídico-legislativo da Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), o reconhecimento por foto passou a ser incorporado nas apurações de crimes principalmente pela falta de estrutura das polícias quanto a efetivar as normas previstas no CPP.

“Com o tempo, criou-se a ideia de que não era necessariamente obrigatório seguir aquele procedimento, porque ele não é dos mais simples. Ele demanda que a pessoa que foi presa seja levada, que se coloque ela junto com outras pessoas. É um procedimento mais trabalhoso e mais custoso, porém é o que está previsto em lei”, diz o defensor público. Segundo ele, o problema começa nas delegacias, mas acaba sendo chancelado pelo Judiciário.

Dora Cavalcanti, diretora do Innocence Project Brasil – dedicada a defender judicialmente pessoas que a entidade entende que foram condenadas injustamente – explica que quando uma autoridade exibe uma foto de algum dos suspeitos, seja ela impressa, de WhatsApp ou de uma rede social, a vítima, fragilizada por ter sofrido uma agressão, acaba induzida ao erro.

“Os crimes normalmente são ações rápidas, que acontecem em espaços mal-iluminados, com os agressores muitas vezes com parte do rosto coberto. O que a ciência mostrou ao longo dos últimos 20 anos é que, sempre que há o reconhecimento unipessoal, isto é, mostra-se apenas um suspeito, a chance de esse reconhecimento ser um falso positivo é enorme”, afirma. “Não é que a vítima queira mandar um inocente para a cadeia, mas ela pode ser enganada pela própria memória, que não funciona com a precisão de uma filmadora”, ressalta.

Para o delegado Rodolfo Queiroz Laterza, presidente da Associação de Delegados de Polícia do Brasil (Adepol), as identificações frágeis que levam a acusações em processos criminais não se devem à existência do reconhecimento fotográfico em si, mas a falhas na valoração do cotejo de provas [a análise do valor jurídico atribuído a uma prova] pelos operadores do sistema de justiça criminal. “Infelizmente, isso ocorre não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. Basta ver a quantidade de documentários de investigações empreendidas pelas polícias nos Estados Unidos baseadas no reconhecimento fotográfico que se revelaram falhas e implicaram em erros judiciais notórios”, diz Laterza.

Wandeck pontua que, recentemente, o Judiciário tem buscado criar meios para evitar a condenação de inocentes a partir desse tipo de reconhecimento. “Essas questões saíram da discussão simplesmente dos tribunais de Justiça, e hoje estamos conseguindo levar a discussão para os tribunais superiores, que têm a obrigação de fazer uma uniformização do entendimento”, declara. “Isso é uma garantia para qualquer cidadão, porque qualquer um pode ser vítima de um reconhecimento errado”.

O grupo de trabalho sobre reconhecimento pessoal não atuará apenas no aspecto do reconhecimento fotográfico. Segundo Dora Cavalcanti, que é uma das integrantes do grupo, o objetivo amplo é diminuir a chance de reconhecimentos equivocado como um todo no sistema de justiça criminal.

“Quando você tem uma pessoa inocente condenada por um crime que ela não cometeu, a pessoa que efetivamente praticou aquele crime continua na rua. A preocupação em aprimorar o sistema de justiça criminal, para que esses erros não aconteçam, é uma preocupação justamente por parte de quem está preocupado em combater a impunidade”, pontua a advogada.

Quanto ao grupo de trabalho, o presidente da Adepol reforça a importância da participação de integrantes das corporações policiais. Segundo o delegado, isso é importante principalmente para que haja uma doutrina técnica e baseada em fundamentos empíricos para esse tipo de diligência.

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