Criado em 2004 com o objetivo de garantir integridade, proporcionar transparência e evitar corrupção no Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem sido usado, nos últimos meses, para punir juízes que manifestam opiniões contrárias às da cúpula do Poder Judiciário. A jurista Eliana Calmon, que foi corregedora nacional de Justiça entre 2010 e 2012, critica fortemente essa tendência em entrevista à Gazeta do Povo.
Vários magistrados foram afastados de suas funções ou viraram alvos de Processos Administrativos Disciplinares (PADs) nos últimos meses. Quase todos têm posicionamento ideológico contrário ao da maior parte dos juízes que ocupam a cúpula do Judiciário no Brasil.
É o caso, por exemplo, da juíza Ludmila Lins Grilo, afastada pelo CNJ de seu cargo na Vara de Infância e Juventude de Unaí (MG) em fevereiro por manifestar opiniões nas redes; ou do juiz Marlos Melek, do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 9ª Região, que sofreu a mesma punição em setembro por somente participar do grupo de WhatsApp “Empresários & Política”, o mesmo que gerou a investigação contra empresários como Luciano Hang e Afrânio Barreira durante as eleições de 2022.
Para Eliana Calmon, esses magistrados estão sendo tratados pelo CNJ "como cidadãos brasileiros menores, sem capacidade de manifestar o seu pensamento, mesmo que este pensamento não seja político, mas só um pensamento divergente". "As divergências existentes em qualquer sociedade democrática são o que faz com que o Estado Democrático de Direito se sustente, porque as divergências existentes no terreno das ideias, no terreno do pensamento, naturalmente, são o que faz crescer a verdadeira ideia de democracia", afirma.
A atitude de escrutínio implacável contra certos juízes por suas manifestações de opinião, para a ex-corregedora nacional, é ainda mais estranha quando se leva em conta o comportamento de magistrados da própria cúpula do Judiciário, que têm sido muito pouco comedidos em seus comentários públicos.
"Eu mesma me surpreendi com uma fala recente do ministro Gilmar Mendes, onde ele dizia o seguinte: o presidente Lula deve a Presidência da República à atuação do Supremo Tribunal Federal. Ora, o Supremo Tribunal Federal, como cúpula do Poder Judiciário, é quem nos dá o exemplo, é quem nos ensina a lição, e é, no dizer comum, quem nos dá o diapasão do comportamento dentro da magistratura", observa Eliana.
Confira as declarações de Eliana Calmon na íntegra.
Liberdade de expressão dos juízes está sendo violada
"Ninguém ignora o que nós estamos vivenciando neste momento. A liberdade de expressão está absolutamente restritiva, porque não se está mais questionando o que se diz, mas está se questionando o pensamento de quem está dizendo. De forma que isso é muito grave. Nos países democráticos isso não existe, porque mesmo aquelas pessoas que têm um cargo público e que têm a responsabilidade – muita responsabilidade – de falar para o público, porque, efetivamente, têm peso social, podem perfeitamente dar sua opinião sobre fatos ocorridos, às vezes até no passado e também no presente.
Mesmo sendo autoridades, continuam a ser cidadãos brasileiros. Eu posso dizer isso com muita tranquilidade, porque eu fui magistrada durante 40 anos e eu sempre respeitei muito os limites da minha profissão. Eu não poderia falar, naturalmente, sobre processos que estão em andamento. Eu não poderia tecer críticas ao governo e às autoridades estabelecidas. Isso eu não podia fazer, porque eu não era uma jornalista. Mas eu podia perfeitamente fazer pontuações sobre certos e determinados comportamentos de algumas autoridades.
E como nós estamos vendo no Supremo Tribunal Federal, que é a cúpula do Poder Judiciário, e de onde nós tiramos todas as regras comportamentais, que tecem como uma linha para todos os que estão nos diversos degraus dessa pirâmide se inspirarem… Eles são os primeiros a tecerem críticas, a fazerem elogios, a antecipar resultados, a falar do presente e do passado…
Eu mesma me surpreendi com uma fala recente do ministro Gilmar Mendes, onde ele dizia o seguinte: o presidente Lula deve a Presidência da República à atuação do Supremo Tribunal Federal. Ora, o Supremo Tribunal Federal, como cúpula do Poder Judiciário, é quem nos dá o exemplo, é quem nos ensina a lição, e é, no dizer comum, quem nos dá o diapasão do comportamento dentro da magistratura.
Seguindo esta linha, que é uma linha tradicional e que está de acordo com a Lei Orgânica da Magistratura Nacional [Loman], muitos dos processos que estão sendo instaurados e muitas das investigações que estão em andamento são alheias às normas estabelecidas. É preciso que eu tenha um fato efetivamente grave, em que estejam sendo ditos elementos que vão além do limite estabelecido pela ética do poder, para que se instaure contra o magistrado uma investigação.
Por exemplo, um magistrado pode participar de redes sociais? Pode. Eu, por exemplo, participo de uma rede social interessantíssima, sobre músicas e filmes, obras de arte, onde eu tenho um grupo onde nós comentamos essas obras de arte. O que não se pode é usar as redes sociais para insuflar a população, tecer o chamado discurso de ódio.
Mas o magistrado pode participar de grupos nas redes sociais? Pode. Mas, logicamente, é necessário que se demonstre através da investigação se ele extrapolou na sua fala, na sua manifestação, aqueles limites estabelecidos – muito bem estabelecidos, inclusive – pela Lei Orgânica da Magistratura. Mais do que qualquer outro poder, o Poder Judiciário sempre teve limites, e limites [estabelecidos] em uma lei complementar.
Então, o que eu posso dizer, e estranho muito, é que muitos dos procedimentos que hoje estão em andamento, e muitos dos magistrados que foram inclusive afastados do cargo, [sofreram isso] porque manifestaram opiniões que são absolutamente pessoais, que nada têm de política partidária.
Porque o magistrado é um político. O magistrado exerce um poder, e o poder dele é um poder político que emana do Estado. O que ele não pode é fazer apologia à política partidária. Isso ele não pode. Nem tecer regras de não aceitação a procedimentos de autoridades estabelecidas. Isso ele não pode.
Mas o que eu estou vendo é a falta de limite não apenas da magistratura – que, em um ou outro caso, efetivamente, extrapola –, mas estou entendendo que a censura que se está estabelecendo em torno da atividade do juiz tem feito com que ele seja um cidadão menor. O juiz, hoje, é um cidadão menor, porque estão estrangulando o direito dele de ser cidadão brasileiro e usar da palavra como cidadão brasileiro."
Magistrados são "contaminados" só por participar de grupos de WhatsApp
"Conheço de perto alguns casos em que efetivamente eles consideram que o magistrado se contamina só pelo fato de que, na rede social, alguém que esteja na mira de outras investigações esteja próximo a este que está sendo investigado. Ou seja, o magistrado não pode sequer trocar conversações com pessoas que estão sendo investigadas pelo inquérito do fim do mundo, ou seja, o inquérito das fake news.
Muitas vezes nem o magistrado tem conhecimento de que aquela pessoa com que ele está lidando em um grupo de WhatsApp tem esta contaminação com aquele inquérito do fim do mundo. E, mais ainda, antes de se fazer a investigação, preliminarmente, ele é afastado do cargo, o que efetivamente faz com que ele tenha uma nódoa no currículo profissional pelo fato de ter sido afastado das atividades profissionais.
Isso é muito grave. Eu mesma conheço o caso de um magistrado… Mandaram, inclusive, a investigação dele para o CNJ, e o CNJ afastou o magistrado, abriu o PAD e mandou para o Ministério Público. Ou seja, além do processo disciplinar, que está em andamento, ele também está sendo investigado pelo Ministério Público, como se fosse uma atividade criminosa ele participar de um grupo de WhatsApp onde não se tem nenhuma notícia de qualquer manifestação desse magistrado sobre a atividade política que possa estar sendo investigada.
Ao chegar este pedido de investigação ao Ministério Público Federal, o procurador imediatamente fez uma requisição ao Supremo Tribunal Federal para que se mandasse as informações sobre as conversas do magistrado neste grupo de WhatsApp, porque ele não recebeu nada até agora do Conselho Nacional de Justiça. De forma que nós estamos num momento muito difícil, e o Conselho Nacional de Justiça tem entendido que, aquilo que está dentro da orientação do Supremo Tribunal Federal, é exatamente para agir desta forma.
Ou seja, os magistrados hoje estão funcionando como cidadãos brasileiros menores, sem capacidade de manifestar o seu pensamento, mesmo que este pensamento não seja político, mas só um pensamento divergente. As divergências existentes em qualquer sociedade democrática são o que faz com que o Estado Democrático de Direito se sustente, porque as divergências existentes no terreno das ideias, no terreno do pensamento, naturalmente, são o que faz crescer a verdadeira ideia de democracia. Isso vem desde a Roma antiga.
Eu agora estou fazendo um estudo sobre a liberdade de expressão, e é isso que nós estamos verificando. Desde a Grécia [Antiga], de Roma, até os nossos dias, somente os estados totalitários, onde existe ditadura, é que se poda toda e qualquer manifestação de pensamento antagônico àquilo que é a diretiva desse Estado totalitário. Em uma pseudodemocracia, não se aceita este tipo de comportamento."
Juízes podem – e devem – criticar erros do Poder Judiciário
"Eu sou uma crítica ferrenha ao Poder Judiciário. Aliás, eu sempre achei que eu jamais chegaria a um tribunal superior diante dos meus posicionamentos.
O que eu criticava do Poder Judiciário? Aquilo que estava contrário ao estabelecido na Lei Orgânica da Magistratura. Todos aqueles, mesmo que fosse meu superior hierárquico, que estivessem agindo contrariamente às regras estabelecidas na Lei Orgânica da Magistratura, eu sempre critiquei. E critiquei de que forma? Nas palestras, em artigos que escrevia, dizendo sempre que era necessário que nós não estivéssemos no anonimato, nós não estivéssemos em silêncio para corrigir aquilo que não estava certo dentro do Poder Judiciário.
Eu não posso, naturalmente, tecer críticas às pessoas que exercem o Poder Judiciário, nominar ministro, nominar desembargador, nominar magistrados, dizendo da sua vida pessoal, falando coisas de que eu não tenho certeza absoluta. Mas um comportamento institucional equivocado, errado e que fere a normas estabelecidas na Loman, naturalmente que o magistrado pode – e até deve – criticar em um regime que seja democrático. Não no momento, porque, no momento, todos estão silenciosos e calados, praticamente amordaçados, com receio de falar. Até as verdades históricas não estão sendo colocadas nos seus devidos lugares."
O CNJ perdeu seu propósito original?
"O propósito original do CNJ está estabelecido na lei, e ele não pode perder. Quem perde isto são aqueles que representam hoje o CNJ. E naturalmente que os conselheiros e o próprio corregedor que está no exercício estão seguindo a linha diretiva dada pelo Supremo Tribunal Federal. E, no momento em que o Supremo Tribunal Federal tem este proceder de não aceitar qualquer manifestação que fale em qualquer dos aspectos de governo, seja ele bolsonarista, seja ele de Lula, seja ele econômico, seja ele político… O CNJ não está questionando. Ele está fazendo como se fosse o feito. Ele está cumprindo ordens, mesmo que essas ordens não sejam expressas. Subliminarmente, o Conselho Nacional de Justiça tornou-se um feitor do Supremo Tribunal Federal."
CNJ se preocupa com comportamento político e se esquece da corrupção
"Nós estamos num momento em que o combate à corrupção não é prioridade de ninguém. Aliás, eu achei muito significativo, porque hoje eu acabo de ver na rede social que o departamento de combate à corrupção da CGU foi extinto por determinação do presidente da República. Ou seja, um órgão – e eu trabalhei, como corregedora, muito com a CGU, com este órgão, este departamento de combate à corrupção – foi extinto.
De forma que a prioridade de hoje não é, absolutamente, de combate à corrupção, nem do governo, nem do Poder Judiciário. Tanto que, hoje, os processos que têm andamento rápido, célere, no Conselho Nacional de Justiça são todos eles voltados para comportamento, vamos dizer assim, 'ideológico' da magistratura, e não para o problema de corrupção dentro do Poder Judiciário. Isso não é prioridade.
E, se assim é, nós estamos num momento muito difícil. Porque um órgão que, dentro do Poder Judiciário, foi um farol que iluminava aquilo que nós já sabíamos que era corrupção e que, dentro do Judiciário, não tinha nenhum resultado, hoje, este órgão não mais se debruça sobre estes processos, porque esses processos não interessam politicamente ao Supremo Tribunal Federal."
CNJ espelha atuação do STF
"O Supremo Tribunal Federal é a cúpula do Poder Judiciário. Se ele fosse uma Corte Constitucional, não seria a cúpula do Poder Judiciário. Mas todas as convergências e divergências do Poder Judiciário passam pelo Supremo Tribunal Federal. E naturalmente que toda a estrutura do Poder Judiciário é um reflexo daquilo que é o Supremo Tribunal Federal. De forma que o Conselho Nacional de Justiça é um órgão que faz parte do Poder Judiciário, tanto que ele é presidido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal. E naturalmente que ele é imagem e semelhança do seu órgão, a quem ele deve todo o poder de atividade."