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Cristovão Tezza

A língua e a borboleta

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Em um de seus Contos Marcianos, Ray Bradbury narra a história de uma viagem turística aos tempos pré-históricos. Os visitantes passeavam sobre uma esteira aérea que não tocava em nada, mas um turista desavisado pisa sobre uma borboleta, matando-a. Imediatamente ele é recolhido pela nave, retornando ao seu tempo presente – e então percebe pequenas e sutis alterações na língua, uma discreta mudança de letras nas placas que ele lê, assombrado. A morte de uma borboleta, milhões de anos atrás, provocou uma transformação na linguagem.

Em algum momento portugueses e brasileiros pisaram em alguma borboleta – foi o que me ocorreu ao visitar Lisboa há alguns dias, participando da Feira de Livros da cidade. Que na vida real falamos línguas distintas, isso todos sabemos – basta encontrar um português pela frente para descobrir. Já no primeiro Metrô que peguei (aliás: Metro), na bela e eficiente rede de transporte de Lisboa, custava a entender a gravação de aviso das estações. Numa delas algo soava como "év-nud", que meus ouvidos moucos e teimosos insistiam loucamente em transformar em "ajuda" para lhe dar alguma réstia de sentido, até que descobri que a estação chamava-se "Avenida". Enquanto eles martelam consoantes, nós arrastamos as vogais. Nada grave – logo peguei o jeito, e até consegui falar português com desenvoltura, a negociar a camisola – digo, a camisa – do Futebol Clube do Porto, campeão do ano.

Também não há novidade nas distinções de vocabulário, que são uma espécie de caricatura da diferença, exemplos que se marcam para indicar que todo o resto é igual. Logo aprendemos que ônibus é "autocarro", banheiro é "casa de banho", trem é "comboio". Mas o que me chamava mesmo a atenção era o caso de palavras que, perfeitamente compreensíveis para nós, parecem arrastar a língua noutra direção, dando-lhe um acento sutil e inesperado, um breve toque semântico distinto. "Trânsito vedado", dizia uma placa. Perfeito, não? Ou então, descobrir na ementa que a dourada grelhada (aliás maravilhosa) se acompanha de "uma dose de arroz". Dose de arroz – por que não? Num outdoor publicitário de eleições, ao lado de uma candidata severa e elegante, li uma construção, digamos, mais complexa: "Não desista. Somos todos precisos" – em que a primeira parte ajuda o brasileiro a entender a segunda. Outro candidato, lembrando o jovem e zangado Collor, de queixo erguido, anunciava uma mensagem deste teor: "Não andamos a brincar aos políticos". Pois. A gente já conhece essa história, como começou e como terminou, mas não essa sintaxe. Já uma outra mensagem era engraçada: "A frescura ganhou nova forma". O produto chamava-se Philadelphia, e fiquei na dúvida, pela imagem e pelos sentidos possíveis, se era uma lata de sardinhas ou um desodorante. Fosse o que fosse, com esse anúncio imagino que aqui não teria a menor chance.

Cristovão Tezza é escritor.

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