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Se é verdade que um bom texto é aquele capaz de transformar a vida, acabo de escrever uma obra-prima. Quem me conhece sabe que não sou de alardear minhas poucas e ralas qualidades, mas dessa vez não resisto ao impulso cabotino. Pois as cinco linhas que redigi, enxutas e precisas, atentas à força da tradição e com um toque tranquilo de modernidade, têm (modéstia à parte) essa perfeição transformadora. Em suma: pedi demissão da Univer­­sidade em que dou aulas há 24 anos. O requerimento ganhará alguns carimbos, duas ou três rubricas, rolará pelos escaninhos e em breve estarei livre co­­mo um pássaro.

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Antes que pensem que enlouqueci – nenhuma cultura é mais avessa ao risco do que a brasileira, e eu me incluo nela – es­­clareço que há em tudo um cálculo cuidadoso, típico da cidade que me educou, em que ponderados custo e benefício, o saldo será uma imensa felicidade, ainda que mais pobre, se é que al­­guém pode se permitir essa so­­berba. Em suma, não gostaria de entregar ao Estado (a essa altura da vida, só a ele, porque como aca­­dêmico já esgotei meus projetos e minha paciência) os dez anos que ainda me faltam para merecer aquela aposentadoria gorda do estamento federal. Pre­­firo gastar esses anos comigo mesmo, enquanto tenho tempo.

Comecei a trabalhar aos 13, como datilógrafo em um escritório da Floriano Peixoto, nos tempos em que menores trabalhavam, e depois fui rolando pelos anos como artista alternativo. Só ganhei o primeiro ca­­rimbo na carteira de trabalho nos meus retardados 34 anos, quando começava minha vida oficial. Mereço uma autoaposentadoria.

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Calculo que passaram por mim cerca de oito ou nove mil estudantes nessas duas décadas e meia, todos sempre com a mesma idade; só eu envelheci. Devo ter lido mais de 100.000 textos escritos por eles, o que sempre deixou meu ouvido e minha intuição sintonizados com a linguagem contemporânea, uma experiência inestimável para quem escreve. Sempre gostei de dar aulas, e acho que os alunos perceberam isso. Manti­­ve-me anos a fio mais um mestre-escola que um pesquisador, e graças à generosa tolerância de meus colegas, consegui escapar, fugindo sorrateiro pelos corredores, de cargos burocráticos infernais, o que me permitiu escrever os livros que escrevi desde Trapo. A universidade foi uma sólida e boa companhia que agora chega ao fim.

Diz a lenda – que minha vaidade ajudou a propagar – que saio da universidade para me dedicar a escrever. Não contem para ninguém, mas o que eu quero mesmo é curtir o ócio, en­­quanto ainda tenho saúde para desfrutá-lo. Claro que esse epicurismo tardio inclui alguma sombra de punição, como o clássico projeto da alimentação mais saudável e caminhadas diárias, mas o saldo é ótimo. Principal­­mente tempo – e o descompromisso psicológico – para ler tu­­do que eu sempre quis ler só pelo prazer da viagem.