O escritor chinês Ma Jian, exilado em Londres, é autor de Pequim em Coma, um elogiado romance sobre o massacre da Praça da Paz Celestial. Convidado da Flip, a Festa Literária Internacional de Parati, planejou passar alguns dias no Rio de Janeiro, e para isso precisaria de um guia. Como fala apenas mandarim, explicou ao intérprete que a condição indispensável era que em hipótese alguma o guia fosse um adepto ou admirador do atual governo chinês. Para uma cabeça brasileira, é uma exigência engraçada: imaginar que algum guia carioca escalado para mostrar o Corcovado ou o Maracanã esteja minimamente interessado no que acontece na China a ponto de defender o governo chinês contra o turista exilado.
Meu contato com Ma Jian foi curioso na agitação de Parati, chegaram até mim reiterados recados de que ele queria falar comigo, até que nos encontramos num jantar comemorativo da editora Record. Através do intérprete, fiquei sabendo que ele gostaria de ouvir um relato sobre a literatura brasileira, "uma visão geral", e senti na alma o peso da responsabilidade, quase que a fio de espada: "Se eu não ouvir esse relato", desfechou Ma Jian, "minha viagem ao Brasil não terá sentido". Inclinei a cabeça e concordei em nome da honra, ainda que gaguejando ressalvas profundas sobre minha competência parodiando Lima Barreto, eu seria o escritor que sabia chinês. Por que eu? Ao contrário de José Sarney, nunca fui traduzido na China. Ao ler seus dados biográficos, imaginei que Ma Jian me escolhera porque também ele foi relojoeiro quando jovem, embora tenha tido menos sorte na sequência, pelo menos, suponho, nas condições chinesas foi pintor de propaganda e fotojornalista de uma revista estatal, até que saiu de lá para não mais voltar.
No dia seguinte Ma Jian apareceu com gravador, filmadora e um bloco de notas, que não largou um minuto. Durante uma hora tentei dar conta dessa tarefa, digamos, diplomática, começando com José de Alencar e a questão da nacionalidade brasileira, e encerrando, em aberto, com o nome de Dalton Trevisan, que ele transformou no seu bloquinho insaciável em belos ideogramas. Ao final, tiramos fotografias e ele me agradeceu profundamente, em especial por ter desfeito o equívoco corrente na China de que o estilo literário dominante no Brasil seria o do "realismo mágico". Depois que ele se foi, lamentei não ter sido eu o repórter, a lhe perguntar detalhes sobre o conflito atual entre os uigures e os hans, que parecem saído das Histórias de Cronópios e de Famas, de Cortázar, mas com sangue de verdade correndo nas ruas. E a recente ameaça do presidente do Partido Comunista chinês de executar os "terroristas" consubstanciando no partido único o Legislativo, o Judiciário e o Executivo, que é o retrato impecável da China parece dar uma dimensão fantástica a Ma Jian, em dizer "não" até na inocente escolha de um guia turístico.
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