Vinte anos atrás visitei várias cidades na Alemanha, fazendo parte de um grupo de escritores e jornalistas brasileiros que visitavam o país a convite da Inter-Nationes, uma instituição de intercâmbio cultural. O muro havia acabado de cair; lembro nitidamente que a passagem em Berlim da parte ocidental para a oriental, de uma quadra para outra, lembrava um filme colorido que súbito ganha a tonalidade sépia. E em Munique, numa tarde livre, em vez de ir ao museu onde havia uma exposição de Rembrandt, insisti para visitar o Museu Karl Valentin, o que causou uma certa estranheza nos guias. Trocar Rembrandt por um palhaço? Insisti, e não me arrependo. Valentin (1882-1948) foi um ator de cabaré dos anos 1930, que criava sketches maravilhosos de humor. E um dos toques de seu humor é a sátira ao espírito de organização de Munique (uma cidade que me pareceu urbanisticamente perfeita), o que talvez explique a resistência a me levarem ao seu museu.Logo na entrada do prédio, uma construção pequena com uma simpática torre circular, uma enorme placa aponta um degrau da escada: "Cuidado, ratos!" No segundo andar, bebi uma maravilhosa caneca de chope, sentado numa cadeira com outra placa indicativa: "Cadeira para não fumantes". Adiante, um enorme garrafão de vidro continha ao fundo uma pequena gota do que parecia água, e a etiqueta: "Suor de funcionário público". E um velho gramofone simulava reproduzir em velhos discos de vinil gravações originais do próprio Karl Valentin. Como a única expressão que aprendi do alemão é das ist selbstverstandlich, uma equação linguística que significa "isto é óbvio", pedi para a guia traduzir um dos sketches.
Valentin explicava à plateia dos anos 30 que um dos grandes problemas de Munique são os carros. Há carros demais, em toda parte. É preciso botar ordem nessa bagunça. Assim não dá mais! E ele tinha uma fórmula infalível: "Na segunda-feira, somente podem rodar os carros de cor preta". E continua, num delírio organizador do mundo: "Na terça-feira, ficam liberadas as ambulâncias. Na quarta, apenas os carros de duas portas. As quintas ficam reservadas para os ônibus". Sextas-feiras, somente pedestres. E assim por diante. (Nem preciso dizer que estou reinventando, 20 anos depois, o que ouvi, mas era mais ou menos assim o espírito do texto.) Eu ria saborosamente das tiradas de Valentin, diante da guia que, seriíssima e gentil o tempo todo, traduzia cada frase. Ela não sabia o que este brasileiro achava de tão engraçado naquilo.
Pois estou em São Paulo e lembrei de Karl Valentin, ao ver pela janela do hotel um gigantesco engarrafamento de carros que parece paralisar o mundo. Aqui está em vigor o rodízio, que tira diariamente de circulação, em alguns horários, uma parcela dos carros. Mas talvez em breve as cidades brasileiras tenham de recorrer ao método mais radical de Valentin.
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