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"Como todos os seus contemporâneos eruditos, Dante aprendeu que a Terra é um globo imóvel no centro do universo." Leio essa frase lapidar sobre a vaidade da ciência numa maravilhosa biografia de Dante Alighieri que valeu minhas férias (Dante, de Barbara Reynolds; Editora Record). Em torno de 1300, no coração do que hoje se chama baixa Idade Média, ciência, religião e política se uniam na explicação totalizante do mundo inteiro; astronomia e cosmogonia se confundiam no mesmo quadro, porque todas as coisas do mundo precisavam obrigatoriamente ter sentido. Já na vida real os pequenos Estados, que herdaram o que sobrara do império romano, continuavam a se matar em guerras sem fim. O próprio Dante morreu no exílio – expulso de Florença, jamais conseguiu voltar para sua cidade.

Neste trepidante epicentro histórico, Dante escreveu a Commedia – só anos mais tarde, Giovanni Boccacio (1313-1375), o primeiro biógrafo do poeta, colocou o apelido "Divina" à obra. Setecentos anos depois, a astronomia de Ptolomeu restou apenas como uma curiosidade da ciência; mas a Divina Comédia continua a intrigar e a encantar seus leitores – alguns a consideram a obra que de fato criou a literatura ocidental como a conhecemos hoje.

O curioso é que a vitalidade deste poema narrativo e sua invencível resistência ao tempo é consequência de tudo que ele tem de imediato, local e contemporâneo: a Divina Comédia é em grande parte um panfleto político, moral e religioso sobre o dia a dia de Dante. Nele, não há nenhum personagem que não seja uma figura conhecida, apresentada com seu próprio nome. Na viagem literária que Dante faz ao Inferno, Purgatório e Paraíso, conduzido primeiro pelas mãos do poeta romano Virgílio, e em seguida pela sua etérea musa Beatriz, figuras mitológicas, históricas e contemporâneas à vida do poeta se misturam concretas no mesmo painel simétrico que dá sentido a tudo. Ao mesmo tempo em que ele apresenta a sua teoria política – por exemplo, defendendo que o poder do Papa teria de se separar do poder terreno, que ficaria na mão de um imperador respeitado por todos os Estados (esta última, uma questão que, digamos, a União Europeia ainda está tentando resolver...) –, o poeta vinga-se de todos os seus poderosos inimigos, colocando-os a penar nos vários círculos do Inferno, enquanto exalta seus amigos e benfeitores, beatificados com a luz do Paraíso. Esses detalhes davam uma tensão especial à leitura pública da obra, num tempo em que a circulação da literatura era predominantemente oral.

E Dante escreveu sua Commedia na língua de Florença, e não em latim, que era o veículo tradicional da elevação poética. Ao escolher a linguagem popular (ante o nariz torcido dos intelectuais da época), Dante colocou a pá de cal no latim como a única língua de cultura, e abriu o caminho sem volta da disseminação romanesca que marcaria o Ocidente.

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