Às vezes me perguntam se escrever literatura é um "dom" ou uma "técnica" em suma, se alguém de fato pode aprender a escrever poemas, contos, romances, ou se isso é uma qualidade inata. A mesma pergunta poderia ser feita para qualquer atividade artística música, pintura, dança, teatro etc. Como cada coisa é uma coisa, é melhor não generalizar. Começo falando de mim e da minha relação com a música, para dar um exemplo extremo. Costumo dizer que não tenho ouvido; tenho orelha. Qualquer tentativa minha de aprender música teve conseqüências patéticas. Para o bem da humanidade e felicidade dos vizinhos, já de pequeno abandonei minhas pretensões no ramo. Sempre me senti o Bolinha naquela célebre aula de violino. O que não me impede de admirar e ouvir música e até de ter o meu quadro de preferências, o que, imagino esperançosamente, sempre exige alguma sensibilidade na área.
Ao mesmo tempo, admiro aqueles que podemos chamar de "músicos natos"; artistas que com uma caixa de fósforos na mão e um assobio fazem milagres de melodia com arte e engenho. A história da música popular está cheia de artistas extraordinários que jamais estudaram teoria musical.
Tudo são meras impressões de cronista os especialistas saberão certamente precisar melhor como funciona essa máquina de talentos. O caso da literatura é diferente. Se não é qualquer um que pode dominar bem um instrumento musical, na literatura qualquer pessoa, por princípio e capacidade neurológica, aprende perfeitamente a ler a escrever, desde que seja normalmente educada e estimulada para isso e ler e escrever são a matéria-prima da literatura. Assim, todas as pessoas estão potencialmente muito próximas da literatura passamos a vida ouvindo e contando histórias, dizendo e repetindo poesias. Assim, na literatura, todos, por princípio, têm o seu "dom" e a sua "técnica". É verdade que é preciso ter alguma inclinação inicial, sempre misteriosa mas a questão central está em outra parte: é a vontade, ou o desejo, de escrever. Para quem não quer ser apenas um diletante, o desejo de escrever é uma aposta quase que sem volta que acaba por "escrever" o escritor.
Lembro do famigerado "exame de admissão" de antigamente, a foice que ceifava a metade das crianças brasileiras já no quarto ano primário para que avançassem ao ginásio ou, digamos, voltassem para a roça. Pois levei pau na prova eliminatória prova de redação! Tive de fazer o vexaminoso "quinto ano" no Grupo Escolar Zacarias, horário do meio, de "recuperação", das 10h30 às 14h30, para tentar outra chance, numa turma de barbados irrecuperáveis e malandros em geral. A crer no "dom", eu já estaria fadado à desgraça desde o início. A tal da "técnica", que se aprende, resolveu o problema básico mas o escritor, mesmo, esse nasceu de uma decisão pessoal que tomei lá pelos meus 15 anos e por ela dirigi minha vida.
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