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Tenho uma relação singular com a palavra "especiarias", de som atraente e um certo toque mítico, pelo significado imaginário que atribuí a ela quando criança. Apesar disso, conferi na busca do computador se em algum dos meus livros, alguma vez, empreguei essa bela palavra, e confirmei: jamais. Há palavras que misteriosamente não entram na nossa vida concreta – habitam um limbo atravancado e difuso de possibilidades que não se realizam. Palavras que, por décadas a fio, se mantêm chucras, hostis, às vezes sob uma aparência tranquila, como "especiarias". Quando aparecem – neste momento, por exemplo, no rótulo de um vidrinho de uma maravilhosa pimenta de cheiro que comprei há dois dias – parecem estrangeiras, embora tudo nela seja enraizadamente português.

As especiarias apareceram na minha vida numa aula de história da minha infância. Disse a professora: os portugueses desenvolveram a navegação e dominaram o mundo na virada do século 15 desbravando os caminhos marítimos para as Índias (esse "caminho para as índias", no plural, também era uma expressão estranha – eles iam atrás das índias? O que se mistura na lembrança com outro grupo de referências, de alguns anos mais tarde). Os portugueses estavam em busca, é claro, das valiosas "especiarias". Na minha cabeça, "especiarias" eram barras de ouro, joias, baús de moedas, butins de piratas – e, em algum momento, não sei de onde tirei isso, também porcelanas chinesas. As especiarias, ao contrário das tais "índias", me pareciam tão óbvias que eu nunca precisei perguntar à professora o que significavam. Aliás, perguntar era sempre um desafio perigoso, que redundaria talvez numa gargalhada coletiva, em reguadas na mão ou acusações genéricas de vagabundagem. Melhor ficar quieto ali na última fila. Felizmente eu "sabia" o que eram as tais especiarias.

Mais tarde, quando alguém me explicou que especiarias eram simplesmente "temperos", a verdade cristalina recusou-se a entrar na minha cabeça caturra; não fazia sentido. Quem seria idiota o suficiente para se lançar por mares nunca dantes navegados só atrás de um punhado de orégano? Numa surda resistência à realidade, meu inconsciente deletou a palavra.

E há aquelas palavras que sabemos bem o que é, até achamos sonora, mas rejeitamos por uma implicância rabugenta. Um exemplo, para ficar no terreno dos alimentos: guloseima. É uma palavra estranhamente afetada, de nariz empinado, cheia de andaimes. Não é uma palavra; é um vocábulo. Guloseima. Há algo incompatível entre o que ela quer dizer e o que ela de fato é. Na verdade, descubro agora, é um misterioso julgamento moral que me leva a recusá-la.

Esmago a pimenta de cheiro no feijão e no azeite, e fecho os olhos, inebriado com o sabor. Pensando melhor, e fazendo justiça, os portugueses estavam certíssimos em correr atrás das índias e se matar por especiarias.

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