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Cristovão Tezza

Esteira Sherazade

 | Ilustração: Benett
(Foto: Ilustração: Benett)

Pretendia começar minha crônica em alto estilo, citando Dante – Nel mezzo del cammin... – mas me ocorreu que, passando dos 60, nem mesmo um otimista delirante como eu se encaixaria na frase. Botando os pés no chão, fui ao médico que, entre cápsulas e conselhos, sugeriu uma ginástica. Nada trágico – acho que ele ficou impressionado com a minha súbita expressão de terror diante da ideia e dourou a pílula: "Caminhadas, alongamentos. Você vai se sentir bem".

Sou uma pessoa sugestionável, e me lembrei de que, anos atrás, cheguei a comprar uma esteira, que hoje cumpre a função de cabide, de confessionário e de remédio para a memória: cada vez que olho para a esteira sinto-me culpado, lembro meus crimes e esboço um projeto de retomada de vida saudável. O problema é a sensação de perda de tempo, uma síndrome que trago da infância e da educação repressiva – bastam dez minutos sem fazer nada "útil" e acho que meu dia se perdeu.

Sei perfeitamente o quanto essa obsessão é idiota, mas não consigo vencê-la. Vivo soterrado por esta metafísica utilitária, como se eu fosse gerente de uma fábrica alemã de produção de parafusos e não um escritor desempregado, cerveja à mão, feliz com os jogos do Atlético. No melhor estilo da "neurociência" de almanaque, que faz pesquisas sofisticadas para provar qualquer coisa que nos livre da responsabilidade pessoal ("a culpa não é minha, é do gene"; "não fui eu, foi o lado esquerdo do cérebro"; "diante do último pastel, eu só agi como um guepardo em situação semelhante"), busco motivos incontestáveis para não me mover.

Bem, nada como buscar bons exemplos na vida. O vizinho Christian Schwartz é hors concours, porque joga futebol toda semana (e até poderia ser o camisa 9 que o Atlético precisa manter no banco para uma emergência); ele não conta. Mas, vendo meu outro vizinho, Caetano Galindo, levar todos os dias o cachorro para passear enquanto lê Finnegans Wake no kindle, isso nestas calçadas caroçudas que destroem o tornozelo do cristão, por que não posso fazer o mesmo na esteira? Ler e andar! Shazam!

Tirei os objetos há anos apoiados na máquina encostada – uma mochila velha, o álbum do Brasileirão de 2006 e duas pilhas de revistas – regulei a velocidade para 4,2 km/h, escolhi um livro (Rei branco e rainha vermelha, de Daniel Johnson, um saboroso relato da relação entre a Guerra Fria e o jogo do xadrez), apertei o botão e comecei a desbravar o tempo em passadas regulares como um Dr. Livingstone das nuvens. É incrível, mas funciona! Fui virando as páginas: criado por budistas, o xadrez chegou à Pérsia e dominou o Islã; bem mais adiante, o jogo é a coqueluche de São Petersburgo e passa a ser um esporte "russo". Quando Lênin ganhou um tabuleiro de presente eu já havia andado mais de meia hora! Maravilha. Suado e feliz, continuo a leitura amanhã. Uma boa razão para caminhar: terminar o livro!

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