Pretendia começar minha crônica em alto estilo, citando Dante Nel mezzo del cammin... mas me ocorreu que, passando dos 60, nem mesmo um otimista delirante como eu se encaixaria na frase. Botando os pés no chão, fui ao médico que, entre cápsulas e conselhos, sugeriu uma ginástica. Nada trágico acho que ele ficou impressionado com a minha súbita expressão de terror diante da ideia e dourou a pílula: "Caminhadas, alongamentos. Você vai se sentir bem".
Sou uma pessoa sugestionável, e me lembrei de que, anos atrás, cheguei a comprar uma esteira, que hoje cumpre a função de cabide, de confessionário e de remédio para a memória: cada vez que olho para a esteira sinto-me culpado, lembro meus crimes e esboço um projeto de retomada de vida saudável. O problema é a sensação de perda de tempo, uma síndrome que trago da infância e da educação repressiva bastam dez minutos sem fazer nada "útil" e acho que meu dia se perdeu.
Sei perfeitamente o quanto essa obsessão é idiota, mas não consigo vencê-la. Vivo soterrado por esta metafísica utilitária, como se eu fosse gerente de uma fábrica alemã de produção de parafusos e não um escritor desempregado, cerveja à mão, feliz com os jogos do Atlético. No melhor estilo da "neurociência" de almanaque, que faz pesquisas sofisticadas para provar qualquer coisa que nos livre da responsabilidade pessoal ("a culpa não é minha, é do gene"; "não fui eu, foi o lado esquerdo do cérebro"; "diante do último pastel, eu só agi como um guepardo em situação semelhante"), busco motivos incontestáveis para não me mover.
Bem, nada como buscar bons exemplos na vida. O vizinho Christian Schwartz é hors concours, porque joga futebol toda semana (e até poderia ser o camisa 9 que o Atlético precisa manter no banco para uma emergência); ele não conta. Mas, vendo meu outro vizinho, Caetano Galindo, levar todos os dias o cachorro para passear enquanto lê Finnegans Wake no kindle, isso nestas calçadas caroçudas que destroem o tornozelo do cristão, por que não posso fazer o mesmo na esteira? Ler e andar! Shazam!
Tirei os objetos há anos apoiados na máquina encostada uma mochila velha, o álbum do Brasileirão de 2006 e duas pilhas de revistas regulei a velocidade para 4,2 km/h, escolhi um livro (Rei branco e rainha vermelha, de Daniel Johnson, um saboroso relato da relação entre a Guerra Fria e o jogo do xadrez), apertei o botão e comecei a desbravar o tempo em passadas regulares como um Dr. Livingstone das nuvens. É incrível, mas funciona! Fui virando as páginas: criado por budistas, o xadrez chegou à Pérsia e dominou o Islã; bem mais adiante, o jogo é a coqueluche de São Petersburgo e passa a ser um esporte "russo". Quando Lênin ganhou um tabuleiro de presente eu já havia andado mais de meia hora! Maravilha. Suado e feliz, continuo a leitura amanhã. Uma boa razão para caminhar: terminar o livro!