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Todos os anos o ritual se repete: gastam-se toneladas de páginas para se falar mal da cerimônia do Oscar, a cafonice da festa, as gafes do ano, os erros de escolha, mas o prêmio tem mesmo uma escala mundial avassaladora a que praticamente nenhum canto do mundo é indiferente. Para mim, o fato mais extraordinário de todos foi a televisão iraniana, por meio de efeitos especiais cinematográficos do Photoshop, "vestir" a primeira-dama dos Estados Unidos, fechando-lhe o decote do vestido e pondo-lhe mangas pudicas, na imagem em que ela dava a premiação ao vencedor do prêmio de melhor filme. É uma iniciativa jornalística, digamos, inescrutável.

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Parodiando o poema, e poderia ser, ao mesmo tempo, na voz do Irã ou dos Estados Unidos ao comentar a "correção", o mundo não suporta tamanha realidade. Mais surrealista fica a cena quando lembramos que a primeira-dama premiava justamente o filme Argo. Para quem não viu, conta a história, real, do resgate de seis americanos escondidos na embaixada do Canadá, nos meses que se seguiram à Revolução Iraniana. O método usado: a CIA inventou a produção de um filme de ficção científica chamado Argo – com roteirista, diretor e produtor "reais", produção devidamente noticiada em revistas e jornais sérios de Hollywood – e mandou a "equipe" para o Irã, pesquisando locais de filmagem. A ideia era tão completamente absurda que deu certo.

O filme é um bom thriller, que segue com competência o padrão do gênero, como milhares de outros. Lincoln é um filme muito mais sofisticado; mesmo A hora mais escura, sobre a caçada a Bin Laden, é mais denso que Argo, para lembrar dois títulos políticos que estavam no páreo.

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O que provavelmente deu um tempero especial ao ganhador é justo o fato de ser uma história real inverossímil que é também um thriller; daquelas histórias que, quando nos contam, não acreditamos. Mas o simples fato de ocorrer a agentes da CIA a ideia de criar um filme imaginário para, como num filme real, salvar seis reféns diz muito do poder do cinema como visão de mundo e do papel que ele tem, a partir da matriz americana, de abstrair e interpretar a realidade numa escala monumental. O peso da informação anexa – "baseado em fatos reais" – é uma legitimação fortíssima. O cinema há muito tempo não é mais um simples entretenimento, uma peça artística, um ornamento acidental das nossas vidas: é um modo universal de recortar, ver e interpretar o mundo com uma penetração popular com que nem o mais fanático iluminista do século 18 sonharia. O interessante é que o cinema, pelo corte de toda narrativa, dá sempre um sentido para a vida; todo filme é uma pequena cosmogonia, se os leitores permitem a metáfora, diante da qual, passivamente, a nossa vida ganha significado.

Bem, saímos do cinema como agora saio da crônica, piscando os olhos ao sol da vida real: para onde estou indo mesmo?