| Foto: Gilberto Yamamoto

Pouca gente comenta, mas lavar louça é uma das atividades mais massivamente repetidas no mundo, o tempo todo, várias vezes ao dia, a semana inteira, até o fim da vida. É difícil imaginar algum trabalho que seja realizado mais vezes na Terra do que lavar louça. Essa ideia me ocorreu, naturalmente, lavando louça, ofício em que sou, modéstia à parte, um especialista. Tudo começou na infância, quando levei pau no exame de admissão ao ginásio e fui matriculado no Grupo Escolar Zacarias no horário do meio, reservado aos incompetentes do quinto ano. Chegava em casa às 14 horas e já encontrava a pilha de louças pronta para lavação, porque em família grande todo mundo tinha de fazer alguma coisa para justificar a existência. Minha técnica precisa veio dali: primeiro ensaboar tudo, ou em blocos separados por categoria (talheres, pratos, copos), e depois enxaguar peça a peça.

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Anos mais tarde, esse know-how foi extremamente útil. Bicho-grilo na Europa dos anos 70, fui parar em Frankfurt, na Alemanha, onde arranjei um emprego na cozinha do Hospital das Clínicas, justamente no setor de lavação de louças. Tarimbado, rápido, eficiente, logo fui transferido para um setor automatizado, em que eu me transformava numa espécie de distribuidor geral dos pratos, talheres, pires e xícaras, tirando as peças das bandejas circulantes e colocando-as numa máquina gigante que fazia o serviço sujo – do outro lado, sob um vapor fumegante, saíam as louças limpíssimas. Era bonito de ver.

De volta ao Brasil, fui morar em comunidade, em que, mais uma vez, todo mundo tinha de fazer a sua parte, e de vez em quando lá estava eu lavando louça, com perícia e atenção. Um dos meus orgulhos é jamais ter quebrado um copo ou um prato durante a lavagem (o perigo é o momento de ensaboar, quando o cuidado deve ser redobrado).

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Depois de casado, imaginei que as coisas mudariam de figura, mas, por azar, como milhões da minha geração, fui vítima do chamado casamento moderno, em que as funções do homem e da mulher passaram a se equiparar, numa espécie de populismo doméstico positivo. Assim, nunca usufruí a imagem sonhada de ficar lendo jornal na sala enquanto a mulher lavaria a louça na cozinha, como uma boa cena de um filme em preto e branco. Pelo contrário, durante longos períodos a mulher trabalhava fora e eu ficava lavando louça em casa, pensando nos livros sensacionais que ainda iria escrever. Mas é claro que, por resíduo machista, sempre tirava o avental antes de atender a porta.

Hoje, felizmente, as coisas mais ou menos tranquilas, só lavo louça por esporte. É um bom exercício, rende um certo prestígio na família e sempre nos permite pensar na vida. Foi lavando louça que me surgiram os melhores temas para crônicas. Às vezes, nas crises da imaginação, o assunto está bem diante do nariz e você não percebe.

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