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Cristovão Tezza

Lojinhas

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Sou fissurado em lojinhas. E, o que é correlato, gosto de perambular pelas ruas antigas e estreitas do centro, Pedro Ivo, José Loureiro – há por ali uma via estranhíssima que passa por baixo de um prédio, sustentado perigosamente por dois palitos de concreto; fico imaginando o tremor dos assoalhos cada vez que ligeirinhos e expressos atravessam o prédio. São portas espremidas anunciando tanta coisa ao mesmo tempo que só prestamos atenção mesmo nas vitrines, ou montras, como diriam os portugueses, de onde veio, via Idade Média, esse gosto pelo que é estreito, pelas ruas curvas, pelo máximo aproveitamento de espaço.

É talvez uma lembrança de infância, essa atração atávica por quinquilharias úteis. Uma vez, numa viagem longa, em vez de trazer uma garrafa de vinho, um bom casaco, um perfume, apareci em casa com um cortador de ovo feito na China, meia dúzia de fios de aço esticados num plástico sem vergonha – põe-se o ovo cozido, e num passe de má­­gica ele se parte em 7 fatias perfeitas. Até hoje funciona, pelo menos uma ou duas vezes por ano, quando me lembro dele pa­­ra inventar uma pizza portuguesa.

Dos meus tempos de relojoeiro, me vem a lembrança das "fornituras", lojas que vendem peças de relógio – eram 10 mil caixas minimalistas organizadas nos balcões e cheias de inimagináveis micropeças, catadas habilmente por pinças: cabelos, eixos, tiges, balanços, âncoras, platôs (se bem me recordo dos nomes técnicos). Lembro dos relojoeiros em suas tendas de vidro – ainda hoje resistem ao tempo, artesãos de uma perícia cada vez mais sem sentido nesse mundo descartável.

Óculos escuros e espelhados, carteiras de times de futebol, protetores de celular, cabos para acendedores de cigarro, X-salada, Conserta-se Sapatos Bolsas Ar­­tigos de Couro, Chaveiro, pilhas e baterias AQUI, Pensão Familiar, livros usados, COMPRAMOS OU­­RO, celulares, artigos religiosos (imprimimos santinhos), velas e incensos, Pão de queijo 3 por 2 reais, e logo ali um incrível Hotel 24 Horas, como se houvesse ho­­tel de meio expediente – há uma Índia oculta em cada ruela brasileira.

E pouco a pouco aparecem as fachadas, ruínas de um tempo próximo oculto por monstrengos publicitários, placas que cobrem tudo (parece que temos agora uma lei contra a poluição visual – será maravilhoso descobrir a Curitiba que se esconde). A arquitetura contemporânea é tão vazia que qualquer coisa com alguma mínima marca de seu tempo – o breve enfeite em relevo, a sacadinha na ja­­nela, o pe­­queno detalhe da geo­­me­­tria anos 30, a gratuidade leve de uma falsa coluna emoldurando uma velha porta, a delicadeza de um ornato num ba­­tente, todos esses sinais de uma desaparecida estética comunitária assomam como raridades preciosas na brutalidade triunfalista das novas construções. Mas as lojinhas resistem nas brechas da modernidade, lembrando teimosamente o Brasil real que se alimenta delas.

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