Repito o que todo mundo sabe: Lula é um dos maiores fenômenos da história brasileira das últimas décadas. Começa pela sua biografia extraordinária e termina pelos índices de popularidade dignos de um santo que, aliás, é provavelmente o modo como ele é percebido em largas faixas da população, à margem de critérios político-partidários. É uma popularidade que nasce antes do instinto, substância insubstituível na formação do carisma, que de qualquer avaliação objetiva mais profunda.
Transformado em avatar do Partido dos Trabalhadores, Lula vem cumprindo esse papel com perfeição, tendo tido o cuidado de não tropeçar na sombra de si mesmo em dois pontos capitais. Do ponto de vista econômico, manteve ferreamente as linhas mestras do plano real, cuja implantação transformou o país, percebendo que o mínimo risco de inflação seria o risco mortal de sua popularidade. E do ponto de vista político, não se deixou fascinar pelo tradicional cântico golpista latino-americano e, por faro, cálculo ou convicção, não importa, desencorajou qualquer movimento em direção a um terceiro mandato a história brasileira agradece.
No mais, seu governo representou a ocupação sistemática da máquina de Estado pela máquina do partido, que, se de um lado se mostrou tão falível e corrupto quanto qualquer partido "burguês", de outro manteve a disciplina jesuítica dos missionários de esquerda, o que faz uma grande diferença. Enquanto o DEM larga seus corruptos pelo caminho, numa debandada envergonhada, o PT defende-os até o último processo, e pela boca solta do próprio Lula.
A alma de sua popularidade é também o seu limite; jamais conseguiu transformar o seu bem-sucedido projeto de poder num projeto de governo ou o que seria sonhar demais em algum conceito de civilização brasileira que vá além do estatismo. Sua visão de mundo limita-se em forçar uma divisão do país marcando uma polaridade chapada entre os bons e os maus, "nós" e "eles", num "ame-o" ou "deixe-o" primário mas demagogicamente eficaz. Ingrato, fez de FHC um satânico "doutor No", numa obsessão psicanalítica o fato óbvio de que as transformações do governo anterior, ao colocar as classes C e D no mapa econômico, geraram de fato o eleitor de Lula, irrita profundamente a ele e seus partidários. A rigor, não teve nenhuma ideia original; o Brasil continua um país violento, injusto, ignorante e sem foco. A notória indigência de suas manifestações públicas, no Brasil ou no exterior, não o preocupa, porque não é o homem letrado que o interessa.A crescente irritação pública ao defender sua candidata uma figura até aqui visivelmente menor do que o papel que pretende assumir talvez seja sintoma compensatório de outro lance de gênio desse Macunaíma político. Afinal, se ela perder, nosso herói terá quatro anos para detonar a situação, o que o seu partido sempre soube fazer bem, e tentar voltar nos braços do povo.