| Foto:

"Pão, circo e carteira de motorista" – foi a imagem solta que me ocorreu, embrião de alguma crônica, na manhã em que fui ao Detran para a segunda parte dessa odisséia miúda, agora enfrentando o temível "exame de conhecimentos", marcado dez dias antes. Dessa vez cheguei mesmo às oito, com aquele ar de superioridade dos veteranos de guerra vendo os pobres calouros acotovelados na fila para o matadouro do agendamento. Aguentem firme, rapazes! Fui direto ao segundo andar, com um livro na mão, porque nunca se sabe o que o Estado nos preparou. Na tarde anterior havia lido as duas apostilas do Detran, em que aprendi o que é um ciclomotor e a quantos passos longos de distância do local de acidente devo colocar o triângulo. Já sabia que não se deve tirar o capacete de um motoqueiro acidentado, mas é bom lembrar. Aflitos colegas de prova se aglomeravam em torno das quatro filas de cadeira diante de uma mesinha guarnecida por uma funcionária severa (é engraçado como o formato de sala de aula se reproduz na arquitetura da burocracia – passamos pelos carimbos da vida para aprender).

CARREGANDO :)

Como tudo no país, a lei da reciclagem do saber do trânsito abriu o cartório do intermediário, agendado pelos deputados que assinaram a lei; se eu pagar 250 reais às autoescolas, não preciso fazer exame. O Estado, com sua eterna vocação para o controle, ou nos tutela, ou nos cobra. Pelo menos a máquina foi pontual: às 8h30 nos chamaram, hora do exame. Imediatamente formou-se uma fila espontânea. Sob ordens precisas e sem humor, botamos a impressão digital no aparelho e avançamos à sala de aula, um a um. Por mais doutor que seja o cidadão, basta sentar numa carteira escolar para o medo da orelha de burro lhe tolher os gestos – cada um dos candidatos, era visível, sofria da tensão típica de um vestibulando da Federal. O fiscal surgiu e deu detalhadas e pacientes explicações, ponto a ponto. Num momento, fez um ditado: pediu que escrevêssemos "Devo respeitar o pedestre", e todos obedeceram. Imaginei que a função daquilo era testar os surdos. Depois, a prova de múltipla escolha: trinta questões mal-formuladas, pedagogicamente inadequadas, pegadinhas com negativas duplas e cascas de banana semânticas. Com meus anos de professor nas costas, imaginei o sofrimento dos colegas adultos já distantes daquele mundo que nem na escola mais faz sentido, a anos-luz da vida real. Uma máquina burocrática impecável para um exame estúpido, cujo único objetivo, parece, é dar dinheiro às autoescolas, na clássica formulação do Estado brasileiro: crie dificuldades e venda facilidades. Duas horas depois, o exame médico, ali mesmo (há poucos dias terceirizaram esse exame, e pelo visto ficou pior). Olhos na luneta, verde, amarelo, vermelho, e uma fila de letras: VNHMD. A carteira chegou em casa em poucos dias. Daqui a cinco anos tem mais.

Cristovão Tezza é escritor.

Publicidade