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Os escritores, com certa pose, costumam citar os clássicos quando se referem às suas influências. Em geral, nas entrevistas, aprendemos a escrever com Balzac, com Flaubert, com Machado de Assis, e a fazer poemas com Eliot, Valèry, Drummond. Mas na verdade as influências mais intensas são as que ultrapassam os gêneros formais, as que nos tocam no modo de olhar para o mundo e criar um repertório de referências culturais. Pais nos influenciam; amigos da vida inteira criam referências; ambientes duradouros deixam marcas; as profissões nos fazem, às vezes insidiosamente; uma rede invisível de contatos informais, da rua à escola, vai desenhando nossa cabeça.

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Pois uma influência marcante na minha visão de mundo, no modo de eu responder a ele e no meu humor ou no estado de espírito, alguém que mostrou com agudeza desconcertante onde focar a câmera quando se olha em torno, este princípio fundamental da observação, foi Millôr Fernandes, que morreu semana passada aos 88 anos. Passei a vida lendo Millôr, onde quer que esbarrasse com ele. Diante de um texto e uma imagem sua, sempre me senti imediatamente próximo – tudo que ele criava me tocava.

Como milhares e milhares de brasileiros letrados, acompanhei Millôr desde criança no Pif-Paf, mais tarde no célebre Pasquim, dali durante décadas nas páginas da Veja, e finalmente no seu sítio na internet. Tudo que ele escreveu e desenhou, das deliciosas "conpozissões imfâtis" às fábulas fabulosas, me interessava, uma pura fruição. Aquela inesgotável cosmogonia de frases, cores e traços que eu absorvi durante mais de quarenta anos, a implacável verruma política a qualquer um que estivesse no poder, seus lirismos inesperados, o prazer da imagem e da cor dando forma a surpreendentes delicadezas verbais, o poder esmagador do riso, foi com certeza deixando marcas culturais nítidas no meu olhar. Nada muito especificamente literário, no sentido convencional da palavra; é engraçado, mas nenhum gênero será mais avesso à arte de Millôr do que a simples ideia de um romance (já o teatro foi um espaço privilegiado de sua criação verbal, das traduções dos clássicos, no que ele foi mestre, às suas próprias peças). Assim, não se trata de uma influência tipicamente "literária"; é simples (simples?, perguntaria o Millôr) jeito de ver e pensar o mundo, dia a dia, no seu duro e indecifrável fragmento cotidiano; uma defesa da inteligência contra o imprevisível, que é a substância do tempo. O seu riso jamais era grosseiro – era uma arma finíssima de desmontagem do mundo, um desvelamento permanente de aparências. Como domínio da forma, o seu texto, o seu traço e a sua cor naquela página irresistível instituem uma persona única e representam por si sós uma educação do olhar.

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Millôr Fernandes foi uma síntese extraordinária do que existiu de melhor na alma e na cultura brasileiras nos últimos 70 anos.