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Como o Brasil inteiro está deitando e rolando sobre a reforma ortográfica, também vou tirar minha casquinha. Ao contrário da maioria, gosto de reformas – e especialmente das ortográficas, que são raras. A escrita é uma convenção arbitrária, e de natureza política (a "letra da lei"), que pode perfeitamente se adaptar aos tempos. A reforma mais radical de todas foi feita na Turquia por Mustafá Kamul Ataturk (1881-1938), que determinou, numa penada, que a língua turca fosse grafada no alfabeto latino, e não mais pelos sinais árabes. Do ponto de vista da língua, nenhum problema: os turcos continuaram falando turco até hoje, como os brasileiros continuariam falando a língua que falam mesmo que se determinasse a nossa escrita em caracteres chineses. Mas a importância simbólica foi notável – a escolha do sistema de escrita representou uma afirmação em favor do Ocidente, decidindo sobre uma tensão que até hoje bate no coração da Turquia.

No Brasil, depois de séculos erráticos ao sabor de uma etimologia muitas vezes mal digerida (os ll, mm, ph, th que atravancavam a escrita nem sempre tinham fundamento histórico), as reformas de 1932 (de comum acordo com Portugal, que aboliu o trema já nessa época), de 1943 (em que o Brasil voltou atrás em muitos pontos) e de 1971 (suprimindo os célebres acentos diferenciais) deram uma boa modernizada à grafia da língua. Nesse ponto, o fato de o português ser uma língua periférica que ninguém conhece nos ajuda; temos uma liberdade que a língua inglesa, por exemplo, jamais terá.

A melhor reforma ortográfica do Brasil foi idealizada por Monteiro Lobato, nos idos de 1920. Fundador de várias editoras importantes no mundo editorial brasileiro do século 20, Lobato arregaçou as mangas e fez sua própria reforma, publicando todos os seus livros de acordo com ela. É um ato de coragem pessoal diante da convenção legal da escrita sem precedentes. Desprezou até mesmo a reforma de 1943. Brincava a respeito, dizendo que o triunfo da civilização de língua inglesa sobre o mundo se devia ao fato de os ingleses não acentuarem palavras: "O tempo que os franceses gastaram em acentuar as palavras foi tempo perdido – que o inglês aproveitou para empolgar o mundo". Quem tiver em casa edições mais antigas de Lobato pode conferir: ele aboliu todos os acentos das proparoxítonas e acabou com o acento grave (marcava a crase, que manteve, com o acento agudo), entre outras boas ideias. E declarava, grafando ao seu modo: "A aceitação do acento está ficando como a marca, a carateristica do carneirismo, do servilismo a tudo quanto cheira a oficial".

A atual reforma tem função exclusivamente política: a unidade de grafia dos países oficialmente lusófonos. É apenas sob essa perspectiva que a questão merece ser discutida, contra ou a favor. O resto é quirera. A propósito: esta crônica está redigida pela nova ortografia. Alguém notou?

Cristovão Tezza é escritor.

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