Houve um tempo em que o silêncio era a expressão natural do mundo, sendo o ruído a exceção que movia e edificava a vida. Hoje, inverteu-se a medida, e em tal intensidade que em nenhuma outra época o silêncio foi tão raro e acidental ou caríssimo, se queremos manter com ele algum conforto. É possível refugiar-se no mato ou fugir para ilhas, como heroicos caçadores de silêncio, mas, se queremos água encanada, luz elétrica e alguma companhia, ponha-se tampão nos ouvidos. A música é o exemplo mais sofisticado de um som domesticado pela cultura; o problema é que a assombrosa onipresença parece esvaziar seu sentido, transformando-a apenas em inesgotável produção de ruído.
Até o século 19 o homem teria de procurar música para ouvi-la, em situações ritualizadas já os tempos da reprodução infinita, com todo o seu fascínio, criaram de contrapeso uma forma inocente de homem-bomba, que aonde quer que vá leva consigo, no peito trepidante, as caixas de som de seu poder de artilharia. De seus carros-tanque de porta-malas abertos, o terrorista dispara as bazucas, as granadas, as metralhadoras, as bombas nucleares de longo alcance que explodem decibéis ao ritmo de bate-estacas, ou, no varejo, o spray sonoro de efeito pimenta, tudo acompanhado de rezas alucinantes e incompreensíveis, pedaços de frases e palavras que se estilhaçam violentos no ar.
Tento entender o que acontece e não consigo. Estou no meu (quase) sempre tranquilo refúgio da praia de Gaivotas, e é daqui naturalmente que me veio o tema da semana: de algum lugar da vizinhança rufam os tambores eletrônicos da guerra limpa, que destrói almas, dilacera nervos, esmaga neurônios, pisoteia em sombras de paciência, mas deixa intactos os telhados, as paredes, as janelas e mesmo os vidros da casa, que apenas vibram. No bombardeio, salva-se indiferente todo o mundo sólido das coisas que não pensam. Matam-se as pessoas, mas permanecem as propriedades.
A batalha sempre explode sem aviso, e a vítima passa por vários estados de espírito, começando pela tolerância comunitária universal como é bela e diversificada a natureza humana, como é bonita a alegria da convivência! , e chegando em desespero às muralhas da esperança: oremos, Senhor, eles estão só testando o som, logo vão desligar, nem é meia-noite ainda, a juventude é assim mesmo... Mas a devastadora artilharia do som de porta-malas logo passa a fazer efeito moral as boas intenções se transformam em desejos malignos (o carro vai explodir!) e em seguida crescem nossas unhas e orelhas em ponta e os dentes caninos, a voz rouca começa a rasgar palavrões, as mãos peludas procuram tacapes, eu vou matar aqueles filhos d... Melhor encerrar a crônica antes que aconteça uma desgraça. E a noite não é para sempre: vai amanhecer, com certeza, e eu ouvirei feliz apenas as cigarras, os passarinhos, o som tranquilo de um novo dia.
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