• Carregando...
 |
| Foto:

Na minha trepidante vida de caixeiro lítero-viajante, estive semana passada em Vilhena, Rondônia, o que foi também uma viagem no tempo. Ao trocar de avião em Cuiabá, saí do ar-condicionado para o vapor da pista sob o sol, e em poucos passos senti um calor inacreditável de dissolver a alma – e lembrei do dia mais quente da minha vida, exatamente em Cuiabá, em algum momento do início dos anos 70, quando fiz uma viagem de dez dias entre São Paulo e Rio Branco, no Acre, a bordo de um monomotor, um Cessna de quatro lugares. Depois de passar um dia em Presidente Prudente, fui a Cuiabá – e nunca mais na vida senti a intensidade daquele calor que me arrastava pelas ruas sem o mínimo sopro de vento, a pele empapando-se num suadouro implacável. É um estado de espírito devastador, como se sob efeito de uma droga que entorpece mas impede o sono, um ópio sem sonhos, o impacto corrosivo dos mais de quarenta graus.

Mas aos 20 anos tudo é novidade – eu tinha a vida pela frente, havia recusado entrar para a universidade, que (eu imaginava) haveria de me destruir como escritor (até hoje não sei se eu estava certo), era dono do meu nariz petulante, e ir para o Acre de carona em um Cessna fazia de mim um pequeno simulacro de Saint-Exupéry. Apesar do calor, a lembrança de Cuiabá é boa – inclui um cinema de rua em que assisti maravilhado "Cabaret", com Liza Minelli, enquanto potentes e barulhentos ventiladores distribuíam o ar quente pelas cabeças suadas da plateia cheia; e uma cerveja na calçada, estupidamente gelada, que descia fritando pela garganta.

Dali fui a Corumbá e em seguida para Vi­­lhena. Vista do alto, naqueles tempos não era mais do que uma imensa pista de pouso no meio de nada, como se apenas prolongasse por outros meios a função do posto telegráfico aberto em 1910. Hoje, descer em Vilhe­­na foi como descer no Norte do Para­­ná ou no interior de Santa Catarina, ou Rio Grande do Sul, até pela paisagem vista de cima, a geometria caprichosa dos quadrados e losangos da agricultura de escala. Descubro na wikipédia que a cidade tem o melhor índice de desenvolvimeno humano de Rondônia, o que de alguma forma é visível andando-se pelas ruas. E o modelo mais ou menos recorrente de prédios de três ou quatro andares, com varandas amplas, dá um toque diferente ao costumeiro e horrendo "padrão-caixote" das cidades novas.

No encontro de que participei, promovido pelo campus de Vilhena da Universidade Federal de Rondônia, ao conversar com pesquisadoras sobre o conceito de regionalismo, me ocorreu o paradoxo de me encontrar no chamado "portal da Amazônia" e não perceber em nada a presença do "típico", ou "exótico", que desde José de Alencar tenta definir a nossa brasilidade. É um Bra­­sil feito a régua e compasso, e não mais ao sabor da picada de mula que classicamente desenhou nossa história.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]