De Lisboa
Uma saia-justa de ordem logística causou um certo desconforto na preparação da visita que a presidente Dilma Rousseff faz a Portugal na segunda-feira. As autoridades portuguesas penaram para ajustar os relógios no dia 10 de junho, justamente no Dia de Portugal, feriado nacional em memória de Camões e dia consagrado ao Santo Anjo da Guarda de Portugal. Presidente da República, primeiro-ministro, ministro dos Negócios Estrangeiros, entre outros, não poderão estar em Lisboa antes do almoço, altura em que terminam as comemorações na cidade histórica de Elvas, no Alentejo.
Já que não poderia ter escolhido data mais concorrida para encerrar o Ano do Brasil em Portugal, que terá show com a cantora Maria Bethânia no Teatro São Carlos, Dilma Rousseff deveria aproveitar os prováveis cochilos do cerimonial para pedir uma inestimável ajuda aos dois grandes protagonistas do Dia de Portugal. Ao Santo Anjo da Guarda deveria requerer proteção nas negociações para a privatização da TAP e dos Correios, duas empresas prontas a ganhar verde-amarelo em suas bandeiras. Quanto a Luís de Camões, Dilma bem poderia solicitar a intercessão do poeta para resolver de uma vez por todas a encrenca provocada pelo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, também chamado de Aborto Ortográfico.
Com o dedo mindinho (tinha de ser) de José Sarney, a reforma ortográfica (mais política que acadêmica) imposta por duas dezenas de acadêmicos reunidos em Lisboa em outubro de 1990 conseguiu enrolar a língua de 250 milhões de pessoas. Entre elas um irredutível colunista do semanário Expresso que, com todas as letras, "se opoen firmemmente ao accordo ortográphico em defesa do portuguez puro e sem mácula". Comendador Marques de Correia, como assina o espirituoso cronista, lembra que "a representação do idioma altera-se ao longo dos annos com uma chímica nem sempre explicável, como se a choreographia das letras dansando umas com as outras, ora agglomerando-se ora apartando-se, promettesse mais do que uma symples forma de nos fazermos entender uns perante os outros".
Antes do "accordo ortográphico" de 1990, houve o rascunho de outro em 1986, no Rio de Janeiro. Depois de provocar debates sem precedentes em Portugal, quando ficou célebre a crônica de Miguel Esteves Cardoso sobre um respeitável "cágado" que perdia o acento e assim se transformava numa palavra nada respeitável. Bastou uma frase para condenar a recauchutagem ortográfica a um estrondoso fracasso: "Eu tenho cágado na banheira".
Para não perder a viagem, agora Dilma Rousseff poderia consultar a Academia das Ciências de Lisboa para arbitrar outra polêmica que vem tirando o sono dos brasileiros: afinal, é presidente ou presidenta?